quinta-feira, novembro 20, 2003

"Deus, do alto de sua sabedoria celestial, deve olhar para o homem religioso na Terra e morrer de vergonha! ELE quis ensinar o amor e o missionário criou a guerra. Quis criar a igualdade e o respeito na diferença, e o desgraçado inventou o preconceito. Quis promover a fraternidade, e o infeliz criou o muro... "
marcelo do tikonteto




ontem estava na sala de espera de meu médico na travessa nossa senhora dos remédios, aqui em caxambu. olhei para cima, descansando os olhos da leitura. e na janela em frente, do lado de dentro, estavam penduradas roupas para secar, coloridas, simples. não sei porque a visão remeteu-me às ruas estreitas da itália com suas roupas secando no varal que corre de janela para janela, às vezes atravessando as ruas. como nos filmes italianos.

perguntei o porque do nome da travessa. a igreja matriz tem o mesmo nome e termina o caminho, ou melhor bifurca-o com um trevo. por isso nossa senhora dos remédios. é o lugar das quintandas, dos açougues, do consultório de alguns médicos , de lojas de móveis e colchões. comércio simples, cotidiano.
no entanto bastou a pergunta para que um senhor que aguardava uma receita contasse que fora seminarista durante quatro anos. e que deixara de ser padre porque vira a luz.

hoje é crente. sua mulher que ele conhece desde os onze anos "nunca botou tesoura no cabelo, e ele vai até quase aos pés dela". "senão continuou ele, como saberiam se eles eram cristãos caso ela cortasse o cabelo? pois o cabelo é o véu da mulher. quando ela sai à rua acompanhada do marido deve trazer o véu na cabeça".

perguntei se caso sua mulher ficasse doente ou pegasse piolho como faria para limpar o cabelo? ele insistiu que por serem pessoas de deus isso nunca aconteceria . pois estavam desapegados das coisas materiais.
ficou explicando a bíblia para os presentes. chegou ao ítem moisés. exaltava moisés.

moisés é um assassino, eu disse . a maioria na sala era de pessoas cristãs, que traziam a verdade com elas. olharam com horror para mim. por que a senhora diz que ele é assassino? perguntou após pedir calma aos presente. meu senhor, expliquei, um homem que suplica ao seu deus que poupe sua gente enquanto está no monte sinai recebendo as tábuas da lei, e eles lá em baixo adorando o bezerro de ouro, e ao descer separa os onze da tribo de levi e os manda matar a todos é um assassino. um genocida. assim como hitler!

silêncio. as vozes se alteraram após o silêncio estufidificado. só faltou que me expulsassem do médico. assim como o padre que me expulsou da igreja do salesianos em santa rosa, niterói, quando eu tinha onze anos e precisava confessar para fazer a comunhão da páscoa. eu baixinho lhe dissera no confessionário: padre eu acho que moisés é assassino. ele saiu do cubículo e com o braço em riste me atirou para fora da igreja.

comunguei sem confessar. recebendo a hóstia com se fosse a maior pecadora do mundo. estudava em colégio de freiras e religião era matéria do currículo. e eu poderia ser reprovada.

não resiti ontem: e tem mais meu senhor. o senhor é louco varrido. quer sua mulher de cabelo arrastando no chão por machismo, submissão. anda com ela como que diz eu sou seu amo e senhor. tenha dó! isso não é religião! e jesus que andava de cabelo grande vocês cristão o consideram o quê? hippie , bicha ou anarquista?

os presentes ficaram mudos. e a conversa terminou. o médico antecipou minha consulta. meu professsor de violino não me dará mais aula , pois é cristão; a mulher da quitanda não me vende mais verdura fresca; quando passei hoje pela travessa nossa senhora dos remédios havia um muro entre mim e os cristãos.

o sol tentava romper as pesadas nuvens de chuva. brilhou um pouco e logo chuviscou. um cheiro de flor de laranjeira tomou a cidade. pela travessa passava um cavalo que sujou de bosta os paralelepípedos. estava sem fraldão. entrei na quitanta e pedi um quilo de pocã. levei também murvoca - acho que o nome é este-. uma tangerina sem tirar nem pôr, só que tem a casca mais grossa que a mexirica.

assim um cotidiano. atravessar a rua. dizer bom dia. e avaliar se os legumes estão frescos e as frutas sortidas.



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