sábado, janeiro 03, 2004

assassinato na vila glicínia


chego de um assassinato. durante o café da manhã.
perguntei: como pode um cara objetivo, matemático, cérebro lógico para quem todo raciocínio é elementar fazer uma pergunta cretina como esta?: "suponho watson, que você seja um homem letrado. como definiria a palavra grotesco?"

ele convive com watson dias e dias, anos e anos e ainda supõe ? não o conhece nem um pouquinho? e gasta duas páginas neste diálogo de suposições? confabulo com orlando e zorra entre um gole e outro de café enquanto descasco o pão. os dois namoram o miolo.

me assalta a lembrança de uma lenda contada por nabokov:"nun fari di pani Bartulumeo". recomendavam os aldeões de messina, na itália; "não faça de um pão um são bartolomeu" de quem foi arrancada a pele.

como eles, os aldeões de messina, minhas avós e tias também não permitiam que caísse um pedaço de pão no chão sem que o recolhesse e beijasse em ato contrito implorando por perdão, pois haviam derrubado o corpo de cristo. como também gardavam todos os farelos recolhidos pacientemente da toalha num pote. serviriam como farinha de rosca.

perdida em lembranças deixo escapar um gesto menos suave e o café entorna na toalha. escorre sobre a mesa e pinga lentamente no chão. aí, como um raio, recordo de "fargo", o filme. quando o homem que mandou raptar a esposa, e vê seus planos irem por água abaixo, sapateia como criança batendo com os objetos sobre a mesa.

sorrio cúmplice para mim. e dano a sapatear. como é gostoso soltar os bichos! orlando e zorra se olham e fogem . chega a realidade de pegar o pano de chão e toalhas de papel para desfazer o estrago. quando reparo no chão pisoteados e manchados de café sherlock holmes e sir arthur conan doyle.

na euforia, até a vila glicínia fora atingida. esfacelada, desmembrada. o café, como sangue, empoça no livro, mistura-se com a tinta tipográfica. a vila não mais existe. nem seus habitantes. eu os havia matado. cato o livro do chão. beijo-o. peço desculpas. um corpo santo acabara de ser violentado. o estrago estava feito. nada devolveria ao lugar as páginas rasgadas.
portanto, sento aqui, perante os juízes, a confessar o assassinato.


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