por Marcia Cezimbra
O psicanalista Jurandir Freire Costa acusa a sociedade brasileira de ter jogado o bem viver na sarjeta. É uma frase forte, sem dúvida, mas proposital. Em seu novo livro O vestígio e a aura (Garamond) cujo título trata da dificuldade do pensador em conciliar o passado (vestígio) e o futuro (aura) ele reconhece que usou essa retórica para causar o maior impacto possível. A idéia é acordar as elites de sua irresponsabilidade social e mostrar que a vida não pode ser este arremedo de parque de diversões que gerou miséria, banditismo e carnificina nas grandes cidades.
A elite está no poder, acumulou muito dinheiro de modo rápido e fácil nos últimos 50 anos, mas não há nada que a contente. Então ela vai comprar felicidade de traficantes de droga diz Jurandir. As elites estão de joelhos diante do lúmpen, implorando por felicidade. Isso é um absurdo. É a cultura de pernas para o ar. Essa inconseqüência com o mundo é que me choca. Por isso, minha intenção é mesmo impactar.
Para dar uma dimensão da quebra simbólica e de valores do que Jurandir chama de cultura de sensações e moral do espetáculo no Brasil, basta, segundo ele, imaginar o Papa João Paulo II, do alto do Vaticano, implorando a um herege, pecador condenado, fora da Igreja, que o faça feliz.
O fato é esse no Brasil. A elite burguesa perdeu o sentido de responsabilidade social. Pode-se ver essa diferença se compararmos a elite de hoje com a de 50 anos atrás. Quem começou o consumo de drogas não foram os pobres, mas as elites que achavam que estavam brincando de Disneylândia. Só que não se pode fazer da vida um mafuá. Paga-se um preço alto, que é o da miséria, do banditismo, e da própria vida afirma.
A moral do espetáculo transformou a figura da autoridade tradicional, de pessoas que tinham responsabilidade social e eram recompensadas com conforto, reconhecimento e admiração, na figura da celebridade, a autoridade do provisório, fútil e irresponsável:
Não me refiro apenas aos ricos, mas também às elites políticas, artísticas, intelectuais e até mesmo científicas, que têm poder de intervir e agem de maneira inconseqüente.
Essa transformação da moral sentimental dos séculos XVIII e XIX na moral do espetáculo ocorreu, segundo Jurandir, em todo o planeta, a partir de uma ideologia conservadora que vingou após a queda do comunismo, de que o mundo já está pronto, logo vamos curtir. Mas em particular no Brasil:
Aqui houve uma enorme concentração de riqueza, as elites acumularam demais e se você não sabe o que fazer com o dinheiro, não adianta ter dinheiro. Pelo contrário, é um fator negativo na sua vida, porque você pode comprar tudo que lhe é maléfico e nefasto.
Na celebridade, uma autoridade fútil
Na celebridade, uma autoridade fútil
O problema não é o poder do dinheiro, segundo Jurandir Freire Costa, mas a falta de prudência no exercício da autoridade, seja ela intelectual, artística, política, religiosa ou econômica. Se o lugar da autoridade é tomado pela celebridade, a situação fica mais grave. Afinada com a moral do entretenimento, na qual a vida é uma grande diversão, a celebridade é programada para idolatrar o momentâneo e com ele desaparecer. Quem vai respeitar essa autoridade fútil, irresponsável e efêmera? Ninguém, segundo o psicanalista, muito menos os delinqüentes, que querem arrancar dos poderosos os objetos que eles ostentam como fonte de prazer:
A crueldade da violência urbana atual vem dessa situação. Por que um delinqüente vai respeitar uma celebridade que não tem responsabilidade para com ninguém, nem para com ela própria? Ela não vale nada!
Já a classe média tenta, de acordo com ele, apropriar-se de seus corpos jovens e magros, caindo no ridículo de idolatrar tais heróis.
É a maneira imaginária com a qual cada um se apropria do que é felicidade diz Jurandir.
O desafio de descobrir novos ideais de vida
A classe média e não apenas as elites precisa também acordar e, segundo Jurandir, descobrir novos ideais de vida, uma nova cultura moral e novas ambições éticas para sair desse círculo vicioso que tem como práticas sociais o consumismo, o culto ao corpo e a violência. Ele mostra que o consumismo não é a origem da violência como tantos apregoam:
O consumismo é a explicação tranqüilizadora que a maioria encontrou para se defender emocionalmente de um estado de coisas que tem dificuldade de entender. Consumismo não é comprar, de maneira nenhuma. A dificuldade que a gente tem de lidar com o atual fascínio pelo corpo e pelo emprego da violência na obtenção de drogas psicoativas ilegais não depende da produção industrial, nem de compra de seus produtos.
O psicanalista absolve a classe média consumista ao provar que, durante séculos, a produção de objetos pela sociedade industrial não levou ninguém à absorção do próprio corpo e ao uso de drogas psicoativas. O consumismo, a cultura do corpo e a violência do tráfico de drogas resultam do modo pelo qual a sociedade vê a vida e imagina a felicidade.
Mudanças devem começar no cotidiano, diz psicanalista
Neste cenário de fim de mundo, o que mais surpreende é que Jurandir Freire Costa se diz otimista em relação ao futuro! E isto parece estampado no próprio rosto do psicanalista, mais jovial com um novo corte de cabelo, mais sorridente que o habitual.
Até a timidez para fotografias foi vencida e ele concordou em posar de sapato e meia em plena areia, sob a aura do céu de Copacabana:
Estou otimista, sim, porque acho que vivemos um momento de transformação e temos que fazer algo. Quer dizer, otimista, vírgula. Apenas não estou pessimista. A saída para o mundo é a saída que a gente der. Meu grande problema é não ser saudosista, nem passadista, porque a História não dá marcha a ré. Nós estamos diferentes. Então, é sanar o que existe de mau e aproveitar o que a gente descobriu para caminhar.
As mudanças devem começar no cotidiano, dentro das casas, de pais para filhos. Jurandir disse que os pais podem começar a pensar no mal que estão fazendo a si mesmos e a seus filhos quando começam a idolatrar as futilidades dos heróis da mídia:
Essas celebridades não podem servir de exemplo moral e social, muito menos para crianças. Cada vez que os pais oferecem aos filhos essas celebridades como modelo, perdem a própria autoridade. A criança sabe que os pais não são um milésimo daquele charme e daquela vida glamourosa e perdem o respeito por eles.
Para Jurandir, os pais têm que enfrentar essa situação com firmeza e autoridade, até mesmo com umas boas bolachas:
Tem horas em que pode dar umas palmadas, não faz mal algum, embora isso não signifique espancar. Castigo também é bom. Os pais que não usam sua autoridade começam a ver sua vida se tornar um calvário.
Jurandir cita como exemplo o grupo de jovens de classe média do Leblon que há alguns dias espancou um rapaz à saída de uma boate:
O que um pai diante de um filho desses não vai sofrer, vendo-o no meio da rua feito um delinqüente, completamente sem tino, cujo único problema era dizer que era da turma da Rua General Urquiza? Isso é dessa cultura. E olha que o nível de conforto das famílias da Zona Sul é um dos maiores do mundo, até com serviços domésticos, que não existem na Europa e nos Estados Unidos.
O psicanalista diz que os pais hoje só pensam em ser jovens e sarados como as celebridades e se divertir.
Ter filhos exige mais responsabilidade e por quase toda a vida. Quem não quiser ter essa responsabilidade não tenha filhos.
A saída é o exercício da solidariedade
Na primeira parte de O vestígio e a aura, Jurandir escreve artigos teóricos de metapsicologia, nos quais analisa teses do psicanalista inglês Donald Winnicott:
Winnicott diz que nós devemos nos extroverter e nos projetar no mundo, nos chamados objetos transicionais. É por isso que digo que a emoção não está dentro da cabeça. Está na música, no quadro que herdei de minha mãe. Num mundo sem sentido, onde tudo isso é desprezível, volta-se para dentro do corpo e deseja-se a droga para vencer o que falta. Eu repetiria Hannah Arendt: a gente não vai encontrar paz, serenidade e alegria sem amor ao mundo.
O livro O vestígio e a aura é um desses objetos transicionais onde Jurandir deposita responsabilidade social e amor pelo mundo, embora não saiba exatamente qual é o melhor caminho para o exercício da solidariedade.
O livro é resultado da minha responsabilidade social. Sou pago pela universidade (ele é professor do Instituto de Medicina Social da Uerj) para pensar a minha sociedade e estou dizendo que ou a gente se socializa ou acabaremos como no filme Matrix: com o mundo destruído, resta um deserto real.
retirado de http://www.garamond.com.br/node.php?id=309 A AURA DO AMOR PELO MUNDO
Marcia Cezimbra
O psicanalista Jurandir Freire Costa acusa a sociedade brasileira de ter jogado o bem viver na sarjeta. É uma frase forte, sem dúvida, mas proposital. Em seu novo livro O vestígio e a aura (Garamond) cujo título trata da dificuldade do pensador em conciliar o passado (vestígio) e o futuro (aura) ele reconhece que usou essa retórica para causar o maior impacto possível. A idéia é acordar as elites de sua irresponsabilidade social e mostrar que a vida não pode ser este arremedo de parque de diversões que gerou miséria, banditismo e carnificina nas grandes cidades.
A elite está no poder, acumulou muito dinheiro de modo rápido e fácil nos últimos 50 anos, mas não há nada que a contente. Então ela vai comprar felicidade de traficantes de droga diz Jurandir. As elites estão de joelhos diante do lúmpen, implorando por felicidade. Isso é um absurdo. É a cultura de pernas para o ar. Essa inconseqüência com o mundo é que me choca. Por isso, minha intenção é mesmo impactar.
Para dar uma dimensão da quebra simbólica e de valores do que Jurandir chama de cultura de sensações e moral do espetáculo no Brasil, basta, segundo ele, imaginar o Papa João Paulo II, do alto do Vaticano, implorando a um herege, pecador condenado, fora da Igreja, que o faça feliz.
O fato é esse no Brasil. A elite burguesa perdeu o sentido de responsabilidade social. Pode-se ver essa diferença se compararmos a elite de hoje com a de 50 anos atrás. Quem começou o consumo de drogas não foram os pobres, mas as elites que achavam que estavam brincando de Disneylândia. Só que não se pode fazer da vida um mafuá. Paga-se um preço alto, que é o da miséria, do banditismo, e da própria vida afirma.
A moral do espetáculo transformou a figura da autoridade tradicional, de pessoas que tinham responsabilidade social e eram recompensadas com conforto, reconhecimento e admiração, na figura da celebridade, a autoridade do provisório, fútil e irresponsável:
Não me refiro apenas aos ricos, mas também às elites políticas, artísticas, intelectuais e até mesmo científicas, que têm poder de intervir e agem de maneira inconseqüente.
Essa transformação da moral sentimental dos séculos XVIII e XIX na moral do espetáculo ocorreu, segundo Jurandir, em todo o planeta, a partir de uma ideologia conservadora que vingou após a queda do comunismo, de que o mundo já está pronto, logo vamos curtir. Mas em particular no Brasil:
Aqui houve uma enorme concentração de riqueza, as elites acumularam demais e se você não sabe o que fazer com o dinheiro, não adianta ter dinheiro. Pelo contrário, é um fator negativo na sua vida, porque você pode comprar tudo que lhe é maléfico e nefasto.
Na celebridade, uma autoridade fútil
Na celebridade, uma autoridade fútil
O problema não é o poder do dinheiro, segundo Jurandir Freire Costa, mas a falta de prudência no exercício da autoridade, seja ela intelectual, artística, política, religiosa ou econômica. Se o lugar da autoridade é tomado pela celebridade, a situação fica mais grave. Afinada com a moral do entretenimento, na qual a vida é uma grande diversão, a celebridade é programada para idolatrar o momentâneo e com ele desaparecer. Quem vai respeitar essa autoridade fútil, irresponsável e efêmera? Ninguém, segundo o psicanalista, muito menos os delinqüentes, que querem arrancar dos poderosos os objetos que eles ostentam como fonte de prazer:
A crueldade da violência urbana atual vem dessa situação. Por que um delinqüente vai respeitar uma celebridade que não tem responsabilidade para com ninguém, nem para com ela própria? Ela não vale nada!
Já a classe média tenta, de acordo com ele, apropriar-se de seus corpos jovens e magros, caindo no ridículo de idolatrar tais heróis.
É a maneira imaginária com a qual cada um se apropria do que é felicidade diz Jurandir.
O desafio de descobrir novos ideais de vida
A classe média e não apenas as elites precisa também acordar e, segundo Jurandir, descobrir novos ideais de vida, uma nova cultura moral e novas ambições éticas para sair desse círculo vicioso que tem como práticas sociais o consumismo, o culto ao corpo e a violência. Ele mostra que o consumismo não é a origem da violência como tantos apregoam:
O consumismo é a explicação tranqüilizadora que a maioria encontrou para se defender emocionalmente de um estado de coisas que tem dificuldade de entender. Consumismo não é comprar, de maneira nenhuma. A dificuldade que a gente tem de lidar com o atual fascínio pelo corpo e pelo emprego da violência na obtenção de drogas psicoativas ilegais não depende da produção industrial, nem de compra de seus produtos.
O psicanalista absolve a classe média consumista ao provar que, durante séculos, a produção de objetos pela sociedade industrial não levou ninguém à absorção do próprio corpo e ao uso de drogas psicoativas. O consumismo, a cultura do corpo e a violência do tráfico de drogas resultam do modo pelo qual a sociedade vê a vida e imagina a felicidade.
Mudanças devem começar no cotidiano, diz psicanalista
Neste cenário de fim de mundo, o que mais surpreende é que Jurandir Freire Costa se diz otimista em relação ao futuro! E isto parece estampado no próprio rosto do psicanalista, mais jovial com um novo corte de cabelo, mais sorridente que o habitual.
Até a timidez para fotografias foi vencida e ele concordou em posar de sapato e meia em plena areia, sob a aura do céu de Copacabana:
Estou otimista, sim, porque acho que vivemos um momento de transformação e temos que fazer algo. Quer dizer, otimista, vírgula. Apenas não estou pessimista. A saída para o mundo é a saída que a gente der. Meu grande problema é não ser saudosista, nem passadista, porque a História não dá marcha a ré. Nós estamos diferentes. Então, é sanar o que existe de mau e aproveitar o que a gente descobriu para caminhar.
As mudanças devem começar no cotidiano, dentro das casas, de pais para filhos. Jurandir disse que os pais podem começar a pensar no mal que estão fazendo a si mesmos e a seus filhos quando começam a idolatrar as futilidades dos heróis da mídia:
Essas celebridades não podem servir de exemplo moral e social, muito menos para crianças. Cada vez que os pais oferecem aos filhos essas celebridades como modelo, perdem a própria autoridade. A criança sabe que os pais não são um milésimo daquele charme e daquela vida glamourosa e perdem o respeito por eles.
Para Jurandir, os pais têm que enfrentar essa situação com firmeza e autoridade, até mesmo com umas boas bolachas:
Tem horas em que pode dar umas palmadas, não faz mal algum, embora isso não signifique espancar. Castigo também é bom. Os pais que não usam sua autoridade começam a ver sua vida se tornar um calvário.
Jurandir cita como exemplo o grupo de jovens de classe média do Leblon que há alguns dias espancou um rapaz à saída de uma boate:
O que um pai diante de um filho desses não vai sofrer, vendo-o no meio da rua feito um delinqüente, completamente sem tino, cujo único problema era dizer que era da turma da Rua General Urquiza? Isso é dessa cultura. E olha que o nível de conforto das famílias da Zona Sul é um dos maiores do mundo, até com serviços domésticos, que não existem na Europa e nos Estados Unidos.
O psicanalista diz que os pais hoje só pensam em ser jovens e sarados como as celebridades e se divertir.
Ter filhos exige mais responsabilidade e por quase toda a vida. Quem não quiser ter essa responsabilidade não tenha filhos.
A saída é o exercício da solidariedade
Na primeira parte de O vestígio e a aura, Jurandir escreve artigos teóricos de metapsicologia, nos quais analisa teses do psicanalista inglês Donald Winnicott:
Winnicott diz que nós devemos nos extroverter e nos projetar no mundo, nos chamados objetos transicionais. É por isso que digo que a emoção não está dentro da cabeça. Está na música, no quadro que herdei de minha mãe. Num mundo sem sentido, onde tudo isso é desprezível, volta-se para dentro do corpo e deseja-se a droga para vencer o que falta. Eu repetiria Hannah Arendt: a gente não vai encontrar paz, serenidade e alegria sem amor ao mundo.
O livro O vestígio e a aura é um desses objetos transicionais onde Jurandir deposita responsabilidade social e amor pelo mundo, embora não saiba exatamente qual é o melhor caminho para o exercício da solidariedade.
O livro é resultado da minha responsabilidade social. Sou pago pela universidade (ele é professor do Instituto de Medicina Social da Uerj) para pensar a minha sociedade e estou dizendo que ou a gente se socializa ou acabaremos como no filme Matrix: com o mundo destruído, resta um deserto real.
praça de baependi
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