quarta-feira, dezembro 17, 2003

Conselho de hiena


Villas Boas Correa,hoje, no JB


Só pode ter sido idéia de alguma hiena amestrada do zoológico de Brasília ou da coleção da Granja do Torto, a sugestão soprada no ouvido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de transformar a expulsão de quatro parlamentares
do PT numa festiva comemoração, com o toque, tão ao gosto do governo, de reunir a bancada fiel, que cumpriu as ordens da degola dos companheiros castigados pela felonia hedionda do abuso de coerência, num banquete na residência íntima das peladas do fim de semana, que preparam o apetite para
o churrasco regado a goles da boa pinga, remédio infalível para esquecer as mágoas.

Como pré-estréia da vasta agenda de eventos, que lança a moda do velório com acompanhamento de regional, o presidente exagerou, em estouvamento intencional, o fino senso de humor nas cerimônias públicas a que compareceu
no dia seguinte à reunião do Diretório Nacional, que por 55 votos favoráveis contra 27 - do terço que ressoa como surda advertência - cumpriu as ordens superiores para a expulsão dos rebeldes. Soltou-se ao receber a comitiva dos gaúchos que foi convidá-lo para a Festa da Uva de 2004. Estava com a corda toda: brincou e distribuiu beijocas nas bochechas das duas princesas, enfiou até as orelhas chapéus na cabeça, sorveu chimarrão na cuia.

Compreende-se que o governo disfarce, com todas as manhas da simulação, o constrangimento que se tinge com as manchas vermelhas da face esfogueada, mas não precisava exceder-se, descambando para a pantomima que não convence a ninguém. Se a turma dos fiéis está de cabeça quente, ressabiada e murcha, precisando de uma injeção de ânimo na veia, os que cultivam o exaustivo hábito de pensar, analisando conseqüências, examinando desdobramentos a
médio e longo prazos, têm apelado para os sedativos contra a insônia.

Não se trata de bancar o equilibrista balançando no trapézio das dúvidas. A evidência se expõe na imprensa, nas reuniões, nos encontros e conversas em que se discute o futuro. Certamente que nada ameno para os banidos, tal como
para os que se justificam, perante a consciência atormentada, com as velhas e ponderáveis normas da disciplina partidária. Vá lá que mereçam o mesmo respeito dos que não se dobraram às ordens contraditórias os que entendem
que cumpriram o dever.

Mas, não vamos cair na gandaia do ridículo, agredindo o decoro. Em alguns pronunciamentos sensatos, vozes governistas reconhecem que as reformas da
Previdência e tributária desviaram-se pelos atalhos equivocados da arrogância desde os começo da novela que acabou com a cena de enforcamento dos infiéis. E pau que nasce torto só endireita forçado pela escora que corrige o desvio. O PT desencavou do saco dos guardados a Carta ao Povo Brasileiro, documento de campanha, com os prenúncios da guinada ideológica da esquerda renegada para a oportunista aliança conservadora. Dela, pouco de falou nos programas do candidato e na inundação amazônica dos discursos.

Frágil despiste. A soberba que subiu à cuca do presidente ignorou a experiência de negociador exercitada na liderança sindical, e partiu para criar o fato consumado no fechamento da questão do voto no Congresso nos enguiços mais controversos das duas propostas de reformas. A tradição
petista do amplo debate interno, com a lavagem da roupa doméstica das divergências, fecha o pano com a votação aberta. O derrotado aceita a decisão majoritária e justifica-se junto ao eleitor e à sociedade, sem apelar para subterfúgios. Outra coisa é escancarar a goela para a colherada
de purgante.

Daí em diante, os dois lados não mais se encontraram, perdidos em erros, agravados por excessos verbais. Até o desfecho inevitável, amarrado pela intransigência. Lula e seu núcleo de metal, com marcas de ferrugem, podem
levantar os tapumes das badalações para esconder as rachaduras nas paredes e os vidros estilhaçados.

Só engana os que querem ser iludidos ou quem não enxerga além da ponta do nariz. O PT entrou no redemoinho de uma crise de identidade. E o cerco aperta-se com as bordoadas de todos os lados. Se a esperta correção de rumo dos tucanos orientada pela presidente do PSDB, José Serra, redefinindo a
legenda como expressão da esquerda, para ocupar o espaço do PT que se deslocou para o centro, é uma clara jogada tática, a onda que encrespa entre os descontentes petistas, com a adesão em bloco dos intelectuais que sempre
apoiaram Lula, em todas as campanhas, tanto pode estourar na ressaca da formação de um novo partido como se fixar como movimento organizado, com tendência a expandir-se nacionalmente até construir a base para o lançamento
da sigla alternativa da dissidência - um cravo espetado na consciência.

A descaracterização do PT dissolve a esquerda, que fecha para balanço e remarcação do estoque. O quadro partidário, penosamente consolidado, do modelo de polarização entre centro e esquerda, perdeu uma perna, desequilibrou-se. Na próxima eleição municipal de prefeitos e vereadores de
2004, o novo PT centrista passará pelo primeiro teste. Insatisfatório, diante das peculiaridades da campanha, que excita as paixões locais.

Mas o tom do PT não será o mesmo da sua afinação histórica. E a frustração nacional, dependente do desempenho administrativo do governo depois do opaco ano inaugural, pode empurrar o voto para os lodaçais da demagogia.

Com o recuo de décadas de lutas e ilusões perdidas.

villasbc@unisys.com.br

enviou : lilian

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