domingo, dezembro 14, 2003

'Pour Heloïse Helène'


Leonardo Boff (JB)


Há poucas músicas mais apaziguadoras que Pour Elise, de Beethoven. Sem presunção, desejaria que minhas reflexões tivessem semelhante efeito. A senadora Heloisa Helena é para mim irmã e companheira de sonhos, de caminhada e de lutas.

Como a maioria dos teólogos da libertação, ela e nós somos filhos da pobreza e fizemos em nossas vidas a opção pelos pobres, contra a pobreza e em favor da vida e da libertação.

Como ela, nos enchemos de iracúndia sagrada face às injustiças do mundo e à humilhação de nosso povo. E quem, face a esses cenários dramáticos, não se indignar, é inimigo de sua própria humanidade. E há muitos em nosso país e no mundo. Mas entre eles nunca esteve Heloisa Helena. Ela mantém a chama viva da herança dos profetas e do maior deles, Jesus de Nazaré. Não aceita negociar e entrar em alianças que impliquem esquecer o sofrimento das grandes maiorias empobrecidas. Especialmente, quando só fazem aumentar a dor.

O PT se caracterizou como aquele partido que se propôs escutar o clamor da Terra e fazer uma política de mudanças que eliminasse as razões para continuar a gritar. Esse é o seu compromisso sagrado, selado com suor e sangue de muitos militantes e de tantos na sociedade que, não sendo do partido, como eu e Frei Betto, apostamos que agora se daria a ruptura instauradora e se inauguraria um Brasil diferente daquele que herdamos há 500 anos. Todos sabemos, o PT no governo herdou um dilúvio. No lugar de uma Arca de Noé, encontrou um Titanic afundando. Teve de fazer de tudo para transformá-lo num transatlântico salvador. E agora, redirecionado, deveria apontar para as mudanças em nome das quais foi salvo e existe: mais centralidade aos pobres e excluídos, desenvolvimento social mais que puro crescimento econômico, mais ouvidos aos da Planície que aos do Planalto.

Tal orientação é essencial à identidade política do PT. Enfraquecê-la, postergá-la, acomodá-la por razões de governabilidade é desnaturar o PT, defraudar a esperança que venceu o medo e perder a chance, talvez única em nossa geração, de fazer transformações estruturais com democracia. Para isso precisamos de sinais concretos mais que de discursos. E esses não ganharam ainda clareza suficiente para nos convencer. Esse é o pano de fundo do inconformismo e do dedo em riste da senadora Heloisa Helena. Sua palavra cortante atinge o nervo da questão e mobiliza a todos. Sua causa é verdadeira, seu móvel é o amor aos pobres mediado pela militância no PT, seu objetivo é puro como nos profetas bíblicos: convocar o governo para a aliança das origens e para o sonho que não pode morrer. Nenhum profeta deve ter muito amor ao seu pescoço, pois nenhum deles morreu na cama. Mas ai do poder que se orientar somente por sua lógica linear e se esquecer de que a saúde de todo poder é conviver com o antipoder que o impede de ser autoritário e absolutista. E silenciar, marginalizar e expulsar Heloisa Helena é mostrar-se fraco e incapaz de aprender da contradição.

Por favor, não imitem a Igreja Hierárquica Católica que sempre caça o pensamento divergente (fui uma das vítimas) e que ao expulsar Lutero de seu seio expulsou a massa crítica e se mediocrizou até os dias de hoje. Queremos um PT que resiste às tentações do poder central que tudo uniformiza. Queremos Heloisa Helena no PT assim como é, profética, irada e cheia de enternecimento.

lboff@uol.com.br
[12/DEZ/2003]

nem poderia deixar de roubar daqui.

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