segunda-feira, fevereiro 09, 2004

no dia 10 deste mês o porcas e parafusos estará fazendo um ano de template novo, criado pela eliane stoducto. no dia 13 de fevereiro, numa sexta -feira estarei completando 62 anos. nasci também em uma sexta-feira. considero simbólica a data que só me trouxe prazer. o da convivência comigo mesma, mesmo com os altos e baixos deste relacionamento, e com as várias pessoas que traçaram comigo a escrita desta vida.

eu sou o que cada um real ou virtual me acrescenta. eu sou vários reflexos. e posso dizer da grade generosidade da vida para comigo. ficarei ausente esta semana. retornarei ao findar da mesma.

agradeço a todos a maravilha da viagem, a permissão que me concederam de compartilhar um pouco da vida de cada um e de sentir o carinho e a afeição de todos nós, uns pelos outros.

deixo postada aqui uma entrevista gravada durante muitos anos com a escritora nélida piñon. era minha intenção publicar um livro com este material.mas até hoje não obtive a autorização da autora.

esta conversa com 130 páginas já havia sido postada no ano passado quando alguns que liam o porcas puderam aproveitar do que fala a escritora, que considero importante pelas revelações e ensinamentos que ela no oferece. o material está gravado originalmente em fita cassete e já foi, todo ele, passado para cd. mantenho meu compromisso com a escritoa nélida piñon de doar as fitas para a acedemia brasileira de letras, após a publicaçãzo do livro.

espero que apreciem a conversa. quanto retornar continuarei com as nossos bate papos. um grande beijo para todos vocês e saibam de minha amizade. (eu sou uma tonta- perece que me depeço para sempre- não é esta a intenção) . cuide-se fal . melhore mariza. pato te amo. zieck vou ali e já volto. por favor diga à lilian zaremba que aceito com muito prazer. li, menina, te espero pro carnaval. márcia, eugenia, helô, hazel, corinha querida, claudinha telles, renata, e todos os demais amigos, vou sentir saudades meus amores.



entrevista com NÉLIDA PIÑON






Vou contar sobre uma Nélida Piñon antiga, quando todos ainda éramos jovens.
Este desejo me veio após ler recentemente seu livro, “O Pão nosso de cada dia”, lançado em l996.
Conheci um pouco da escritora, e do ser humano Nélida Piñon, até o livro “O Calor das Coisas”. Hoje, após mais livros e uma vida venturosa, não a reconheço mais.
Afinal, seguimos trajetórias opostas! Enquanto a literatura era vida para ela, eu trabalhava em mil coisas para sobreviver, e pouco ou nenhum tempo sobrava para a literatura.
E mesmo, na realidade, eu não desejava para mim senão ser uma grande escritora. Menos não me bastava, e sei que não tenho estofo para tanto!
Nélida Piñon faz parte das minhas memórias e, como tenho algumas fitas de conversas nossas gravadas , para matérias jornalísticas que fiz, e porque sinto ternura ao lembrá-la, vou contar o que dizem as fitas e as recordações.
Uma lembrança, esta mais recente, quando liguei de São Lourenço, em Minas Gerais, onde morava, pedindo que falasse sobre o poder do verbo, matéria de um jornal que estava criando para a “Livraria Avalon”, e até hoje estou aguardando a resposta.
Tendo ela estranhado que eu falasse verbo, e não palavra. Como se a palavra/verbo estivesse sendo inventada naquele momento!
Explico: sou uma repórter da antiga, talvez um pouco agressiva, para o mundo concordante, burocrático e submisso do jornalismo atual. Na minha ignorância supunha eu, que verbo e palavra seriam as mesmas coisas, teriam o mesmo significado.

Outra lembrança: quando liguei para sua casa, pedindo uma entrevista ao vivo para a Rádio da Universidade, que eu havia criado. E funcionava assim mesmo, no imprevisto para entrevistados, o que nos obrigava, muitas vezes, a invadir privacidades, sem qualquer sensacionalismo, é importante que isto seja dito, pois sempre se tratava de assuntos inerentes ao momento.
Mas que levantou, em menos de um ano, alguns pontos no IBOPE, naquele horário que nós ocupávamos . E, quando assumi, era apenas um traço nos institutos de pesquisa.
Era manhã cedo. Ela reclamou e a entrevista não aconteceu.

Mas sempre obtive respostas atenciosas. Sempre, sempre, conheci uma Nélida Piñon afável, se é que alguém pode usar o termo conhecer, sempre pronta em ajudar e estimular as pessoas. Com uma força verbal , ao falar, esplendorosa!
E hoje, passados tantos anos, quando estou relendo seus livros, vejo, agora com mais calma, esta mesma força no texto, no uso das palavras, intenso, dramático, sem se comprometer com a mediocridade, enfim, o fogo sagrado da arte, que sempre a confortou.
Talvez, por isto, por admirá-la tanto, eu sempre a tenha procurado para entrevistas, ao inaugurar qualquer projeto jornalístico!

Para minha memória Nélida é uma pessoa sempre em movimento, desde jovem, quando ainda tinha um karman-ghia branco na garagem e escrevia sua ficção numa hermes baby.
Morava na Cupertino Durão, no Leblon, ela e sua mãe, Dona Carmem, na primeira vez em que a visitei.
E quando a escritora Carmem da Silva, talvez a primeira líder feminista do Brasil, e seu companheiro Claudio, também da Silva, me contavam das ceias de natal que a família de Nélida comemorava com os amigos, minha imaginação ia longe, vendo através da descrição de Carmem, um roteiro de celebração, rituais e pompas.

Lembro da força de Nélida Piñon, seu grande entusiasmo pela vida, a expressão enfática que dava às conversas, e o uso precioso da palavra, sua maior companheira de aventura .
Vida que a levou até a presidência da Academia Brasileira de Letras, a receber o prêmio “Juan Rulfo”, e não sei que outras comendas e premiações mais! Pois hoje, o que dela tomo conhecimento, é através dos jornais.
Lembro quando realizei a Feira do Autor em l976, no Campo de São Bento, em Niterói, RJ. Nélida nos desejou boa sorte. Estava indo para outra feira, em Barcelona e avisou que traria sugestões.
O cerco dos órgãos de segurança do governo militar se tornava insustentável. Fui chamada ao gabinete do Reitor da Universidade Federal Fluminense, Geraldo Sebastião Tavares Cardoso, e aconselhada por assessores militares que ali haviam ido, a desistir da empreitada. Deixei claro que não o faria.
Então começaram as dificuldades. O então Prefeito nomeado,- na época os governantes eram nomeados pelos militares no poder- Ronaldo Fabrício, estipulou um preço para a colocação de barracas no Campo de São Bento, por metro quadrado utilizado. Preço que não lembro, mas era exorbitante em todos os sentidos. Principalmente, por ser o Campo de São Bento uma praça pública, do povo!
Eu ganhei uma sombra dos órgãos de segurança a me seguir, noite e dia.
Quando enfim a Feira foi inaugurada, com todas as ameaças pairando sobre nós, com escritores vindos de todas as partes do Brasil, lembro grata até hoje do Alberto Dines, atento na redação do “ Jornal do Brasil” para qualquer imprevisto.
O mais comum era a Light não ligar nunca a energia elétrica do Campo de São Bento, e das arandelas que iluminavam a Feira. Então no apartamento do Sávio Soares de Souza e da Eneida, em frente ao Campo, ficava um grupo em prontidão, que telefonava ao Dines nos momentos de apreensão. E ele acionava as tvs e rádios, que noticiavam o que acontecia, até que os problemas fossem solucionados.
Geralmente, o problema era mesmo com a Light, nossa única dependência como feirantes, que por fim, iluminava a “Feira do Autor” que acontecia aos domingos, desde manhã cedo, e não tinha hora para terminar.
Um dia, Maurício Azedo, estudante universitário e jornalista polêmico do jornal conservador local “O Fluminense”, subiu num caixote e iniciou um discurso forte contra o governo militar.
Era o que as autoridades policiais precisavam para caçar a licença da “ Feira do Autor”, necessária numa época em que as editoras, distribuidoras ou livrarias, não abriam espaço para autores brasileiros, principalmente iniciantes.
Não sei como encontrei forças para calar o Maurício e faze-lo de descer de seu palanque improvisado, eu em luta interior, me sentindo censora, mas sabendo que precisava resguardar aquele espaço tão duramente conquistado! Força física, pois Maurício era muito alto, e eu a usei para tirá-lo do caixote.
Depois entendi. Ao meu lado, ajudando estavam Luíza Barreto Leite, com sua bela altura e autoridade moral, Heloísa Maranhão e Lígia Jobim.
Foi difícil para o Maurício entender nosso ato de prevenção, cassando-lhe a palavra, parecendo membros do regime autoritário. Mas ali, na “ Feira do Autor “, conseguíamos dizer tanta coisa com nossos livros, nossa presença, nossa luta que congregou tantos estados da federação, e lançou nacionalmente nomes novos, que seria um absurdo vê-la cassada por uma atitude impensada!
Mas estou saindo do assunto deste livro. E tornando este prólogo muito longo! Retornemos.
Esta a primeira fita gravada, quando do lançamento do livro “A Força do Destino”, que tem o mesmo nome da ópera da Giuseppe Verdi:


Nélida- Eu não tenho interesse em discutir problemas editoriais. A não ser num debate público, em que a proposta me seja colocada.
Esther- Você consegue viver do seu trabalho?
Nélida- Não. Não consigo e acho que poucos escritores brasileiros conseguem, não é? Embora, atualmente, já haja um elenco de autores que estejam alcançando um certo nível estável de vendagem! Já aparecem alguns que têm recolhimento mensal, relativamente honrado, mas são muito poucos .São poucos realmente! Eu não estou nesta linha.
Esther- Você acredita que a regulamentação da profissão contribuiria alguma coisa para...
Nélida- Olha, acho a questão muito mais complexa do que apenas regulamentar a profissão e ativar o sindicato. Eu sou favorável ao sindicato e tanto sou, que sou uma batalhadora, estou muito ligada à luta do sindicato e pretendo levar esta tarefa adiante.
Mas eu sei perfeitamente que não adianta um sindicato forte, ou melhor diria, um sindicato ativo, num país onde os sindicatos são enfraquecidos.
A vida sindical nossa foi paralisada. Não tem a menor relevância.. E, não adianta, até mesmo, melhor controlar as relações entre editor e escritor... claro que adianta, eu quero deixar claro que sou favorável a tudo àquilo que facilite o trabalho do autor, que permita que o autor venha, um dia, a viver de literatura. Mas eu acho que a coisa é tão mais complexa, à medida que livro é um problema cultural, entendeu? E o povo brasileiro não tem acesso à cultura.

- Nessa ocasião a escritora participava da diretoria do Sindicato dos Escritores.-
Esther- Não caberia ao escritor o papel, já que ao governo e às classe dominantes não interessa, de educar este povo?
Nós temos uma experiência: a “Feira do Autor” realizada em Niterói, quando alguns escritores de renome ficaram chocados ao vender pessoalmente seus livros e receberem pelo que estavam vendendo. E diziam: “eu não sou vendedor! Não posso fazer isto. Eu sou escritor!” Já os iniciantes, ficavam felizes ao vender um livro. A proposição da “Feira do Autor” era a educação e, também esta: Desmitificar o escritor. O livro e a criação são produtos vendáveis! Este pudor em lidar com o recebimento da criação é profundamente burguês! E a presença do escritor lidando com o público poderia interessá-lo pela leitura de seus livros, ou de outros autores, já que temos uma tradição oral enorme... a nossa formação é oral!...
Nélida- Mas... ocorre o seguinte, olha! Eu sou favorável a todos esses desempenhos do escritor, que ele desempenhe até funções extras, além daquela de escrever, e bem escrever, pois o fundamental é escrever bem, para um autor. Bom! Mas eu também sei muito bem, isto através das minhas experiências pelo Brasil, também participando de feiras, de autógrafos, conversando com alunos de colégio primário, de escola pública, indo ao Sesc, essas organizações operárias, tudo isto, eu sei muito bem que eles não compram livros, não podem comprar os livros, entendeu? E se compram um livro, não comprarão o segundo. Porque a cultura é alguma coisa estranha a eles. Porque há em andamento, ou sempre houve em processo, um esquema sistemático de repressão cultural. Nunca interessou à elite brasileira que o povo brasileiro viesse a adquirir hábito de leitura, viesse a descobrir-se no livro, viesse a saber que ele, povo, tem uma história, que ele faz parte da história e que ele fez a história, entende? Ah...e quando muito... o povo brasileiro é extremamente sensível, é um ser muito visual, é um ser que adora música, mas música ele consegue comprar, na medida em que os sons entram, ele é um ser musical! Ele trata esta faculdade de ouvir com mais naturalidade do que ler. Ler pede, exige um sistema cultural, um sistema de compreensão do texto, um sistema que lhe permita por em ordem e entender, ao mesmo tempo, uma frase após outra frase. A palavra é conceitual por excelência.
O som é alguma coisa que te emociona, não é verdade? Você aceita, você escuta, se deixa invadir por ele, mas você não precisa explicá-lo culturalmente. Você entende? É-lhe fácil acompanhar as frases musicais seguintes, mesmo que você não tenha digerido profundamente as anteriores. Você fica com um primeiro nível leve de leitura.
O livro não! O livro obriga você não só a saber ler! Coisa que o povo brasileiro não sabe ler, mas entender cada palavra, e saber que existe uma organização sintática.
Organização sintática pede um mínimo de apropriação cultural, sem o que, a frase que você leu cinco minutos antes, não tem o menor significado no teu esquema mental cinco minutos depois! Você é incapaz de entender o que você está lendo!

Esther- Esta estrutura sintática talvez funcione...
Nélida- Não funciona não Esther! Funciona para a elite. No fundo, no fundo, somos nós que estamos lendo! Você entende? O povo brasileiro, vamos dizer assim o povão, é melhor. Que povo, todos nós somos povo! isso é uma coisa muito vaga, ficamos com uma conversa assim muito, muito, sem consistência... O povão mesmo pode ler? Você, a mim, ou Jorge Amado? Não lê! Ele até gostaria de ler. Mas o livro para ele é um objeto de luxo. Já não é só pelo preço! Ele não tem é intimidade com a palavra, com a história. Ele tem sim, essa tradição oral muito grande. Mas ele ainda não se beneficiou da transposição da tradição oral para a tradição escrita. Ele está na fase oral ainda!
Esther- Ontem estava assistindo a uma entrevista com uma cantora da MPB, e ela dizia que se colocassem num palco um músico e um poeta- vamos falar de poesia que ela chega mais rápido do que a prosa...
Nélida- Depende da poesia. Depende da poesia não é? Você esta falando da poesia cantada. Vai ler Drumond...!
Esther- Chega mais depressa também.
Nélida- Não chega! Não chega...
Esther- Chega pelo rítmo.
Nélida- Não chega. Não chega, não chega, não chega querida, você vai ter de entender...
Esther- A prosa tem um rítmo mais longo, a frase musical é bem mais longa.
Nélida- Eu não acredito. Eu acho que um grande poeta, ou um poeta, de um modo geral, que trabalha a linguagem, que tem uma proposta rica, uma proposta temática múltipla, ele não chega. Chega o poeta que fez a poesia amparada num tema musical, na música. Chico, Caetano, etc...Ai sim. Mas senão não chega.
Anibal- Normalmente chega pelo som não é?


É bom lembrar agora- talvez devesse ter citado antes- que me acompanhou até a casa da Nélida, pois queria vê-la, o então livreiro Anibal Bragança, na época em que ser livreiro marcava uma trajetória de respeito e conhecimento do livro, do escritor, do leitor e das artes gráficas.
Anibal, foi dono de algumas livrarias em Niterói, e sonhou todos os sonhos possíveis de serem sonhados com o livro. Hoje, não sei se ainda sonha. Tornou-se professor na Universidade Federal Fluminense, do Instituto de Arte e Comunicação Social.
A conversa inicial se deveu a uma pergunta que ele trazia para Nélida Piñon.
É bom frisar que, como livreiro, Anibal dava a maior força aos autores novos, e ajudou muito na realização da “Feira do Autor”, com seu entusiasmo.
Deixe-me ver como lembro de Anibal. Um homem delicadíssimo, muito atraente, com inquiridores olhos azuis, prestes a seduzir. Nunca consegui penetrar sua alma. E sei muito pouco sobre ele. Lembro sua figura terna. Não sei se conseguimos ser amigos. Sei que tentamos. Falar sobre Anibal é lembrar imediatamente de Veiga Leitão. Poeta português que, fugido de Salazar, morou anos no Brasil, e teceu laços profundos com a gente da terra. é lembrar de tnatos laços...

Anibal- A poesia simples normalmente chega pelo som...
Nélida- É... ( a poesia) muito simples, traduzida pela música, o canal é a música.
Anibal. É, a musicalidade (diz alguma coisa, que por estar longe do microfone do gravador não dá para entender)
Esther- Exatamente. O canal é o som... E numa segunda percepção ele vê que tem letra...
Nélida- Mas aí quem prendeu o interesse dele foi a música. Nós não temos a música. Então o texto sem música exige um arcabouço intelectual muito maior!Anibal- Até um arcabouço estrutural econômico. Para se ler, é preciso uma certa condição ambiental. Quer dizer, que a pessoa tenha um lugar, em casa, que possa ler, que possa ficar quieto. É preciso uma certa solidão, uma certa intimidade...
Nélida- Mas aí você está apresentando ,vamos dizer, supostamente, pessoas que saibam ler.
Mas o que eu estava dizendo é o seguinte, que o povo brasileiro não pode ler, porque não sabe ler. Eu digo povo, povão. Pois se 30 milhões de brasileiros não escovam os dentes porque não têm pasta dentifrícia, como é que nós estamos falando aqui em livro nesses termos?

Anibal- Eu achei que você falou muito mais de fora de você, do que de dentro . Muito mais de sua situação social, como artista, como escritora, da sua existência prática... Mas também não há como você falar de outra coisa...
Nélida- É verdade porque...
Anibal- Na hora em que Esther fechar este gravador eu acho até ,que a gente pode até... eu que estou aqui muito para te ver, em contraste com outras pessoas, realmente isto tem alguma importância (o que foi conversado antes) e eu sei o que você pensa acerca disso, trabalho com isso, então é uma coisa que me interessa. Mas também é uma coisa menor. Todo esse papo é uma coisa menor. Mas realmente nós estamos aqui falando para uma outra pessoa que não somos só nós três.Nélida- Está gravando? Desliga um pouquinho.

Eu desliguei o gravador.

Retorna ainda o Anibal e me parece que o assunto é o mesmo.
Anibal- É uma presença estranha, não é? É um outro público que vai entrar, então você tem de falar, quer dizer, o que eu penso é isso. Que não há porque, se você quiser, não há porque você falar de outra coisa que não seja o fora. Pode ser que entre nós...Se a gente estiver aqui para tomar uma coca-cola, não sei, possa falar de mim, o que eu sinto, o que eu sou, quer dizer, me permitir uma intimidade com uma pessoa. Mas, não sei porque isto é necessário, em termos pouco profundos.
Nélida- Numa entrevista desenvolve-se mais o lado do profissional, mais o lado vamos dizer do processo de criação, o que o motivou a escrever e como ele se tornou um profissional. Até que ponto fundem-se estas duas tendências, criatividade a serviço de um profissionalismo, não é verdade? Quer dizer, um lado mais dele na intimidade, do artista na intimidade, o que seria de um certo modo, eu acho, que falar sobre sua criatividade, o seu processo, como é que seu mundo aflora, eu acho que é um desnudamento imenso.
Esther- Nélida, você já foi repelida por regar jardins alheios?
Nélida- Repelida?... afastada assim, repelida?
Esther- Exatamente.
Nélida- Não entendi bem. Isto é metafórico?
Esther- Está no seu livro .”A Força do Destino”. Um personagem regava as rosas do marquês e desagradou-o profundamente.
Nélida- Já não lembro mais que pedaço é este...
Esther- Alguma vez você já regou...
Nélida- Ah... seguramente. Ao longo da vida a gente se exercitou plenamente em fazer muitas coisas. Muitas coisas a gente inventa, e inventar de certo modo é fazer, não é?
Outro dia até, numa carta, uma professora pedia que eu equacionasse certas questões, que ela está fazendo um trabalho sobre um livro meu, então eu disse que eu já tinha ido, até onde podia ir na ação com meu próprio texto, que não pretendia ultrapassar estes limites, ou seja, não queria trocar de funções, eu ser a crítica, e ela teria de entender perfeitamente que à medida em que um texto é publicado, você abdica dele, ele não é mais seu, e que ela tivesse a total liberdade de inventar!
Porque inventar, de certo modo, é o melhor modo de você fazer a realidade, ou interpretar a realidade. E que a ficção é apenas aparentemente ficcional. A ficção é um dos aspectos da realidade. O que a ficção diz, o que a ficção engata no seu texto, nela, no que ela diz estar inventando, a revelação, é estar até aquém da realidade! Então, com isto realmente eu gostaria de podermos inventar, de podermos dizer coisas mais concretas...eu acho que há vários lados do ser. O ser é tão rico!

Esther- Que jardins você estaria regando agora?
Nélida- Mas em que sentido? Porque isto é bem metafórico...Porque, se eu não pedir que você me explique melhor, você vai me atribuir em excesso a liberdade de criar.
Esther- Eu gostaria que você fizesse isso.
Nélida- Aí vou fazer outro texto. E eu tenho a impressão que convinha que nós nos prendessemos a certos ditames. O que você quer dizer exatamente com essas ...
Esther- Você não gostaria de responder assim?
Nélida- Não. Sabe por que, está muito vago! Eu preferia que você desse maior concressão à pergunta.
Esther- Até que ponto o alheio é alheio? Até que ponto quando você escreve não está regando jardins alheios?
Nélida- Ah sim! Vou pegar um aspecto dessa questão. Eu acho que o escritor tem a pretensão realmente de regar, ele tem mais até do que regar. Ele tem a pretensão de inundar o jardim alheio, não é verdade? Até arrancar flores, arrancar a terra, vai contra a simetria de um jardim plantado, contra a acomodação, o lado doméstico de um jardim. A tendência dele, talvez a pretensão do artista seja realmente convulcionar a ordem das flores, a ordem da terra, a ordem de um jardim, como diz você...
Realmente é uma invasão! O artista invade o alheio. Ele invade independentemente até de sua própria proposta, na medida em que ele utiliza um instrumental socializado que é a linguagem. Então ele está regando a si mesmo e regando o outro. Ele representa o outro!

Esther- Em que momento de sua criação você convulsionou um jardim?
Nélida- Em meu texto?
Eu diria que você está me propondo que eu confesse em que medida eu organizei meu caos, não é isso? Então, eu acho que me cabia... eu acho que o caos é extremamente rico, mas pede uma ordem. Porque senão, eu e o meu caos, você e o seu, o alheio com o caos, nós precisamos somar os caos. Então a ordem, de certo modo, traduz o caos comum, soma um caos comum, não é verdade?
Então, em termos de minha obra, de meu texto eu permito... em nome de minha criatividade, eu presido meu texto, e acho que eu presido até um certo ponto, porque eu permito que os elementos mais imponderáveis, mais assim estranhos e estrangeiros, me assaltem e ingressem no meu texto, o que de certo modo é um caos que entra, mas a serviço de uma ordem, que estava em minhas mãos levar adiante. Então, com todos esses elementos de ordem, elementos caóticos, do caos, eu no final, eu sou senhora absoluta, quer dizer sou senhora absoluta de um tipo de leitura de meu texto, não é verdade? Aí, no final, eu apuro a minha linguagem, eu me desfaço da bagagem que eu não quero, eu refaço algumas vezes, cinco, seis, sete vezes o mesmo texto, até que eu possa sentir que o texto aproximou-se, o mais possível, daquilo que eu precisava revelar, daquilo que eu precisava dizer.




Hoje, agora, consigo entender o que incomodava Aníbal durante a entrevista. Ele solicitava uma Nélida mais solta. Ele não desejava, se não estou enganada, respostas prontas, já concedidas em outras reportagens.
Mais, ele queria ser um amigo e ouvir confidências da escritora. Incomodava-o ser apenas o
acompanhante da repórter, que o impedia de ir além, e o obrigava a ficar restrito à superfície das coisas.
E a repórter, até por falta de bagagem intelectual, aceitava que a escritora refizesse as perguntas, as reinterpretasse, no momento em que ousava demais, e pressentia que havia avançado o sinal, com suas invencionices, para não falar em invasão de privacidade. Ele desejava uma repórter mais capacitada para o mister!
O que Nélida Piñon permitia revelar, ela o estava fazendo. Revelando, na medida das perguntas que lhe eram propostas.
Por isto Anibal se rebelava! E a repórter não sabia como aprofundar as questões.
Após as últimas respostas acabei acreditando que Nélida conduzia com todo cuidado seu processo criativo, não permitindo qualquer desvio de rota, assim como conduzia conversas e entrevistas.
Parecia-me que Nélida buscava respostas para a posteridade. Mas, nesta época, todos estávamos preocupados com a posteridade. Onde a escritora Nélida Piñon tem hoje um lugar garantido, por seus merecimentos.
Eu gostaria de falar aqui de uma sensação que sempre senti, e creio, me atrevo até a dizer, que todos sentem a mesma coisa: conversar com a escritora sempre nos tornava melhores do que somos.
Nélida, sei que tem até hoje este dom, porque recentemente assisti a uma entrevista sua na TVE, no programa da Leda Neagle, e presenciei a metamorfose dos participantes. As vozes ficam mais meigas, o nível da conversa sobe alguns decibéis, etc... Ela obriga, docemente, que as pessoas se superem e se tornem melhores do que realmente o são, em contato com ela! Isto me impressiona muito. Por que será assim? Há nela uma simplicidade absoluta que cativa qualquer pessoa!


Esther- Esta sua resposta está me parecendo uma posição de profeta. De Cristo. Até de Deus! Revelando aos poucos o que aos poucos as pessoas pudessem apreender.
Nélida- Não, isso é uma outra coisa que você está dizendo! Não disse nada disso! O profeta lida com milagres, lida com anunciações!
Esther- O autor, o artista lida com anunciações!
Nélida- Eu não acredito que o artista seja tão profético como se quer dizer. Eu acho que o artista é muito mais arcaico. Ele é eventualmente um homem do futuro. Mas ele é um ser, que lida também, com formas antigas. A linguagem o precedeu. Ele é um sucessor da linguagem .Então, eu acho que nem sempre, tudo aquilo que ele diz, precisará necessariamente estar inserido no futuro.
Claro que o texto dele decodificado é um texto do futuro. O futuro poderá lê-lo melhor, se o que ele escreveu merece leituras mais atentas e demoradas, não é verdade? Mas não me agrada essa idéia do escritor ser uma criatura profética, porque isso me dá a sensação de ele estar desvinculado com uma ideologia do presente, quer dizer, com uma posição participante do presente! É um ser, vamos dizer... excessivamente protegido, porque tudo o que ele diz tem caráter de milagre, tem caráter de anunciação. Tem caráter de Espírito Santo!
Não! Eu acho que ele não é profeta, na medida em que aquilo que ele diz é muito do que ele vê, do que ele testou, do que ele botou o dedo na ferida. Agora, eventualmente, aquilo que eu te falei , há no que ele diz, naquela carga revelada, naquela carga meditada, que ele meditou, resultado da sua reflexão pessoal, muita coisa entrou, muitos ingredientes, muitos desses ingredientes são realmente mágicos. Mas na medida em que o povo é mágico, você entende? O povo é profundamente mágico. Na medida em que a vida é mágica, em que a própria vida não sabe o que está vivendo, então ele revela!
Mas não àquele caráter assim: vai acontecer no futuro isso, isso... isso... Este aspecto não me agrada no artista, porque o aliena e o torna uma criatura menos social.
Eu quero o artista mais participante e com maior responsabilidade social, apesar de todo um lado mágico que ele tem, mas que não é profético. É eventualmente, profético, pode ser. Um aspecto...

Esther- Eu acredito que ele é um profeta do seu tempo, do presente, porque ele exercita também esta possibilidade.
Nélida- Eu... mais... bem ,eu prefiro sabe? do que profeta , profeta é uma palavra que serve muito mais à ideologia oficial do que à arte, do que ao artista, na medida em que aliena muito! E os profetas foram apedrejados e condenados. Não quer dizer que eu queira o beneplácito, não, não. Mas é preciso que o artista esteja muito mais inserido no seu meio social! Que aquilo que ele diz é muito produto da sua reflexão.
Esther- Sim. Mas nem por isso ele deixa de ser apedrejado, crucificado...
Nélida- Mas aí é uma outra razão. Porque não interessa, porque àquilo que ele revela, àquilo que resultou de sua reflexão, não interessa ao sistema.
Nesse sentido! Mas o material dele, chamado entre aspas, profético, estava diante dele. As pessoas que talvez tivessem a sua trajetória cultural, poderiam muito bem perceber essa anunciação . Não é do artista, porque não é um privilégio só do artista. Agora, evidentemente, o artista é um ser altamente sensível, talvez tenha uma sensibilidade acima da média, não é verdade? Então por isto, cabe-lhe enxergar os mundos vigentes, mais do que àqueles que foram oficializados e que forem enumerados. Agora à medida que ele enumera, indica, àqueles mundos não visíveis, eventualmente ele passa por profético. Mas não! Os mundos estão aqui! Ele não diz...
O profeta da Bíblia é distinto, ele anuncia tempos vindouros, não é verdade? O escritor anuncia os tempos que estão diante dele. Só que ninguém enxerga. Ele torna visível realidades invisíveis, mas que existiam. Eu acho que o povo é mágico! Está tudo aí! Está tudo aí! Apenas o escritor, talvez seja mais bem dotado para os enunciados. Mas eu acho que o material está todo presente.


Tudo o que foi dito, há cerca de trinta anos atrás, retrata um hoje, bem mais empobrecido é verdade, mas tudo sobre o que se falava naquela época é atual, como o cerceamento da liberdade individual, etc...
Parece que nada muda! Hoje também, devido à questões financeiras, por falta de acesso do povão ao saber, aos livros, o escritor brasileiro, ainda hoje é um marginalizado do mercado editorial. Houve conquistas! Mas não com a força com que se pretendia , desde então!.
Assim como também está marginalizado o cineasta, o escultor, o pintor, como estão à margem todos os que lidam com a arte.
A profecia talvez exista no ser que cria, como o escritor, porque o mundo é muito dizível e previsível. Mas este lado profeta do ser que cria, eu o vejo palpável e até palatável.
Porque esta conversa que se deu num passado remoto, me traz no corpo a lembrança de um dia de sol no verão, do corpo queimado da praia e do café, que eu quase sem saborear tomava, com urgência em extrair da escritora o máximo, pois eu sabia que ela estava falando para a posteridade. E, dizendo o presente, ela predizia o futuro. Para mim, proféticamente.
Ao falar, a escritora Nélida Piñon, escande cuidadosamente as palavras, as frases que são meditadas, antes de serem pronunciadas. Não uma meditação do momento. Mas me parece que sempre a escritora, sempre, questionou todos os assuntos possíveis, e trazia organizadas dentro de si as respostas a serem dadas.

Uma amiga de Nélida Piñon, filóloga, que trabalhava então com Antonio Houaiss, na elaboração de um dicionário, Elza, chegou posteriormente e participou dessa nossa conversa, entremeada de ruído de xícara batendo em pires, colher retinindo na xícara, no ato de misturar o açúcar , algum dizer paralelo, como pode colocar o café aqui, interrupção para apresentação da filóloga, que morava no apartamento ao lado do da escritora, nesta ocasião na Barra da Tijuca.

Elza- Porque o contrário seria negar a qualquer pessoa que não seja escritor, ter as mesmas coisas! Esther- Será que todo mundo pode ver...?
Elza- Bem dotado, com sensibilidade, pode. Talvez não possa transmitir.
Nélida- Então, aí que está a maravilha do escritor, a importância social do escritor.
Esther- E o trabalho do profeta não foi o de transmitir?
Nélida- ( Com a participação de Elza em algumas afirmações) Não era transmitir. Ele anunciava. Os tempos vindouros _ a escritora usa aqui, para exemplificar uma impostação que se supõe deveria ser usada pelos profetas- virá Cristo daqui a tanto tempo, que há de vir da casa de David, entendeu?
Eu não consigo anunciar nada! Eu não consigo... O que eu consigo anunciar, se é que eu consigo, é revelar novas facetas, não é que sejam novas facetas, mas facetas não visíveis do homem. É entrar alma adentro, se me permite a palavra alma, corpo
adentro, entranhas adentro, e mostrar o que há dentro do humano. Está aí. Eu não inventei nada! O artista não inventa não! Ele eventualmente inventa! Ele eventualmente apropria-se de formas novas. Só o novo é que se recria. Nós não sabemos que estamos criando o novo, você entende? De modo que...
E sabe o que eu acho Esther? Eu tenho muito medo da palavra profeta, porque a palavra profeta , de certo modo é realmente, é uma cassação do artista. Mostra em que medida o artista pode ser transferido para o futuro, porque ele não interessa ao presente.

Esther- Eu acho que a palavra profeta tem várias conotações...
Nélida- Mas nós temos que ver o caráter político da palavra profeta. Há um lado ideológico que nós temos que cuidar. Porque você vê que sempre interessou ao sistema, por exemplo, abolir o imaginário, a fantasia, a chamada fantasia. Por que? E porque sempre se colocou, por exemplo, a palavra fantasia associada à mulher e ao mundo infantil? Num sentido depreciativo e limitador, não é verdade? Àquele que detém o poder nunca quis ter a fantasia. Ele sempre achou que a fantasia era incompatível com a realidade que ele dominava. Não é isso?

Troquei a fita no gravador, conversamos sobre coisas mais amenas. Nélida estava queimada de sol. Havia passado uma parte da manhã na piscina de sua cobertura.
Eu e Aníbal, fomos visitar a piscina. Depois a sala de trabalho da escritora: uma mesa, estantes com livro atrás da cadeira, onde ela sentava para escrever, uma sala pequena, despojada, quase ascética.
Nesta ocasião corriam várias histórias, não sei se maldosas, ou fruto da imaginação das pessoas que desejavam se aproximar, de alguma forma, de outra que se tornava lendária; seja por seus inúmeros livros; seja por seu trabalho no Sindicato dos Escritores, pela firmeza de suas convicções, por não se tornar com facilidade alvo da mídia e, creio que principalmente por sua facilidade em ir e vir pelo mundo, e pela maneira com que resguardava sua privacidade, o certo é que alguns contavam que Nélida Piñon escrevia usando um guarda-pó, para não se contaminar com as palavras. Mais outros alguns diziam que a escritora havia transformado sua vida, apenas num organograma de trabalho e metas a serem alcançadas. Todos gostavam de dizer à boca miúda alguma coisa sobre Nélida Piñon, já altamente contaminada pelas palavras e, creio que, por nada mais. Ah! ela devia também ter uma organização de trabalho, para poder resolver sua vida. Como todos nós!
Socialmente comentava-se muito Nélida Piñon, especulava-se sobre ela, que possuia amigos seletos e amados. Mas, como ela mesmo dizia, “poucos me lêem”, compram até meus livros , mas não lêem.
Não sei se isto vale até hoje, dezembro de l998, quando estou escrevendo sobre as fitas gravadas, como já disse, emulada por seu livro “O Pão Nosso de Cada Dia”, que li com atraso de alguns anos. (a publicação deste texto foi feita no ano passado no porcas. e está sendo repetida agora)


Nélida- Eu dizia que toda nossa formação cultural sempre se associou à palavra fantasia, ao mundo infantil e à mulher, no sentido depreciativo, profundamente depreciativo. O homem, que detinha o poder, não tinha fantasia porque não precisava da fantasia! Como se a fantasia fosse incompatível com a realidade que ele dominava e que tinha de gerir a seu gosto, e segundo a sua conveniência.
Então, veja você, a fantasia é o imaginário, porque em realidade os donos do poder sempre foram sábios, exigentes por isso mesmo e, sabiam, ou eles intuíam,que o imaginário é uma das formas mais avançadas de rebeldia e de subversão. É onde o homem reinvindica um mundo melhor, reinvindica a melhor porção para ele, para ele social, para o coletivo.
Então, quando menos imaginário circule na nossa sociedade, mas estaremos todos nós dominados pelo sistema bem comportado, pelo sistema que realmente aboliu a fantasia.
Então quando eu utilizo certas palavras, ou eu as cancelo, eu estou procurando dar-lhes assim um sentido mais amplo, em que medida, apenas aparentemente, ela beneficia o artista. Talvez para mim eu pudesse me contentar e até ficar seduzida com a perspectiva de ser meio profética! Não eu Nélida Piñon, eu artista, eu escritora. Mas quando eu dou a volta por cima, é na medida de mostrar o aspecto de usina, de elemento transformador do escritor no seu tempo. Embora, eventualmente, certas leituras se farão melhor, e mais ricas, no futuro, para os artistas maiores.

Esther- Então chego até a crer que teremos de mudar a conceituação da palavra artista que se torna quase pejorativa .
Nélida- Ah! Claro, claro. Mas nós não podemos empobrecer nosso vocabulário e nossas definições. O que nós temos de fazer é traduzir o conceito de artista de um modo mais contemporâneo, mais atuante, mais socializado! Agora é preciso que nós tenhamos certas estacas, que defendamos certo patrimônio comum.
Então para mim a palavra artista, sobretudo à palavra artista que está um pouco minada, eu prefiro a palavra escritor, no caso daquele que escreve.
Eu acho que o escritor é um ser para mim de alta responsabilidade social, que tem um patrimônio a defender, que tem uma memória a arquivar e que tem... a maior responsabilidade dele... você sabe qual é para mim?, para o escritor? É àquele que ao narrar uma história, e narrar quer dizer àquele que sabe, narrador quer dizer àquele que sabe, ao narrar uma história, entende?, ele não só prova no seu texto o quanto a biografia oficial não existe, porque a biografia humana é riquíssima, e não pode estar limitada a um retrato 3x4, e não esgotar-se numa definição de cinco minutos, como também àquele que ao contar a história humana, ele mostra ao outro, ao ser coletivo, o quanto a história dele é rica, o quanto ele viveu sem se ter dado conta.
Quer dizer, você pega um cidadão anônimo na rua e diz: veja você, veja você o quanto você pode não somente ter direito a mais, você pode pedir mais, sua vida pode ser muito mais rica, como também, veja o que você viveu sem se ter dado conta, você é muito mais próspero do que você pensa. Por isso mesmo você pode pedir mais ! E prova ao outro quanto o homem viveu! É a garantia máxima de que houve uma leva humana que nos precedeu.

Esther- Estão, chegamos a conclusão, que a síntese é uma arma da elite para minar ...
Nélida- Você quer dizer síntese, as definições, as nomenclaturas . Ah sim! E por isso mesmo temos de estar muito vigilantes...
Esther- E teríamos de nomear individualmente, fazer compartimentos estanques. Por exempo, o cantor, o escritor...
Nélida- Não, não. Aí você está... Por aí é muito perigoso. Por que aí pode estar parecendo que tudo isso que eu defini, tão bonito, com relação ao escritor é só sobre o escritor. Não. Eu coloquei, por que é o que eu acho... eu falei como escritor, porque é como eu me chamo! Desde pequenininha que eu me chamo escritora!
Eu com l8 anos, atendendo a um pedido do Aníbal, sobre um lado mais íntimo meu, mais biográfico, pinceladas pessoais minhas, eu já estou começando a... enfim, a me sentir mais à vontade, eu me lembro que quando eu ia para meus hoteizinhos, eu gostava muito de escrever fora do Rio, e naquelas fichas de inscrição e tal, de hóspedes, não?, eu dizia Nélida Cuiñas Piñon, e quando chegava em profissão, eu era petulante, arrogante, e sem a menor vergonha eu dizia assim: escritora.
Então, eu me habituei, eu me vi, eu me vesti, eu não separo a minha vida da literatura, que para mim literatura é vida! Sabe? Eu realmente, embora eu seja uma profissional, bastante responsável, mas eu sou responsável na medida em que eu sou responsável com a vida, porque senão o livro não me interessava!


Já estávamos com uma hora e meia de entrevista e gravação, contando com toda a paciência de Nélida Piñon ,que à medida em que corria o tempo mais se entusiasmava como se provocasse ondas com suas palavras, ondas cada uma mais soberba do que a outra, e sem se afogar, ela aumentava o tamanho delas, como um surfista deslizando na própria fala e cada vez mais adrenalinado com o tamanho do mar.
Lúdica, era a relação de Nélida com as palavras, o texto. O modo como brincava, ou melhor utilizava, o conhecimento da língua, que lhe servia para propiciar vários níveis de leitura de seu trabalho. Então, como que para descansar, todos entramos em sua biografia pessoal.


Esther- Quando você entrou para a Faculdade de Comunicação o que você pretendia auferir com isto?
Nélida- Ah... Eu não pensava nada! Eu só pensava olha...eu não fui nada ortodoxa... Quando eu entrei para a faculdade eu não tinha a menor vontade de entrar para a faculdade, mas eu sabia que precisava entrar e porque. Eu tinha muita leitura na época, e eu sabia que era importante mais ou menos organizar esse tipo de leitura, talvez eu pudesse aprimorar, enfim... era uma conclusão natural fazer a faculdade, como hoje também é, não é? Bem, mas a minha grande fascinação na época...
Esther- E você conseguiu se aprimorar na faculdade?
Nélida- Muito relativo. Mas eu acho o seguinte sabe?, eu não descarto as coisas. Alguma coisa eu aprendi. De alguma coisa me valeu aquilo. Quando mais não seja, eu freqüentei um extrato novo para mim. Eu lidei com pessoas novas, com professores. Eu busquei, sofri alterações. Eu acho que foi importante. Eu não me descarto dessa experiência.
Agora, na época eu era uma mulher, aliás, na época eu era jovem, muito interessada...

Esther- Uma mulher não deixa de ser uma ...
Nélida- É mas eu quis... uma mulher é àquela que já se apropriou de formas completas, não digo de formas físicas não, de formas mais completas de expressão. Eu quero mostrar que eu tinha as fissuras maiores na época... Mas eu me lembro, e quis de certo modo ao dizer jovem, proteger, não tanto por recato, mas proteger minha paixão da época.
Eu tinha paixões enormes!, em relação por exemplo, eu vivia no Teatro Municipal. Eu tinha paixão por balé, aliás, por ópera, e isso aparece muito nesse meu livro de hoje, não é? (Trata-se do livro que motivou a entrevista, “A força do Destino”, lançado em l977.)Vivia em torno do Teatro Municipal, com música de câmara, eu me dava com artistas, com bailarinos e, ao mesmo tempo era de uma fidelidade exemplar à literatura. Mas não me dava com o escritor. Eu não tinha atração maior pela pessoa do escritor na época. Eu sentia que haveria de chegar um tempo que eu ia lidar com o escritor pelo resto da minha vida.

Esther- Nesta época você já escrevia?
Nélida- Desde menina! Eu vendia jornalzinho para o meu pai , e um desses jornais eu tenho até hoje. Aos seis, sete anos, logo que comecei a escrever... não, não, um pouco mais, oito, nove anos, eu comecei a fazer jornaiszinhos para o meu pai. E meu pai, dulcíssimo e um homem extremamente galante, que me mandava rosas todos os domingos, isso é um detalhe de ordem pessoal ,então ele comprava todos os jornaiszinhos que eu fazia.
Quando eu terminei a faculdade, trabalhei uns quatro meses, sei lá, num jornal aqui, carioca, mas sabendo que eu não ia adiante, que eu nada tinha a ver, quer dizer, eu queria viver totalmente dedicada à literatura.

Esther- E sua experiência logo a seguir de editora nos “Cadernos Brasileiros”?
Nélida- Aquilo foi uma experiência muito boa pra mim.
Esther- Foi no ano de 60?
Nélida- Não. Foi mais tarde. Acho que eu trabalhei lá em 64, 66, eu saí antes de um número especial que eles iam fazer pros militares, e que eu não concordei com esse número e me afastei. Mas foi muito bom, porque eu desenvolvi um lado, eu sou um pouco mulher de ação, sempre gostei de organizar coisas, de calcular, dar uma certa ordem, de sei lá, de fazer um fichário, não é?, de modo que eu não queria ser... há um lado meu que não se contenta apenas em ser uma mulher de gabinete. Eu gosto muito de contato com o público, de contato social, de estar com as pessoas, de conversar, de ser mediadora do meu texto, do que eu sou como escritora, e do que o outro é... Quer dizer eu recolher esse material e reservar. Ser uma pequena modesta memória ambulante. Então eu sinto necessidade de estar no centro dos acontecimentos. Polir muitas das minhas características pessoais. Neutralizar. Ficar bem neutralizada, um pouco até massificada, mas para ser o outro, mais bem o outro do que a mim mesma.
Então eu acho que nos “Cadernos Brasileiros” desenvolvi uma experiência de trabalhar em grupo, coisa que eu não tinha, não é?... Trabalhar em grupo, de pegar o texto do outro, e eu fiz muito isso, que era bastante novo aqui, trabalhar o texto junto, com a permissão do autor. Um trabalho de editing americano. Um trabalho de editoria mesmo, no sentido americano. Eu trabalhava muito o texto do outro. Eu inventava temas. Aí descobria alguém lá no
Amazonas, escrevia para essa pessoa... Essa pessoa nunca tinha recebido uma carta, talvez uma revista, então eu estimulava essa pessoa a escrever sobre esse
tema, aí a pessoa me mandava, aí eu devolvia o tema e dizia não, que tal se você desenvolver sob esse aspecto? Que você corte isto, aperfeiçoe essa linguagem. Enfim me dava muito gosto, e por isto que eu gostei dessa tarefa, era como se eu de certo modo já estivesse fazendo àquilo que, de certo modo, eu vim a desenvolver mais tarde na Faculdade de Letras do Rio de Janeiro, no curso de criatividade, que no fundo é o que eu gosto mesmo. É provar quanto o outro é criativo. Que isso não é um privilégio só do profissional. Que o ser humano é profundamente criativo e que, às vezes, faltam-lhe oportunidades culturais. Alguém que seja bastante incandescente, alguém que o carbonize, para que ele então se incline a criar. Criar com as mãos, criar com a palavra, pegar um pincel, você entende? Enfim, sensibilizar o outro, fazer com que o outro veja os chamados mundos não oficiais.
Então nesse período eu trabalhei em “Cadernos Brasileiros”, convivi com muita gente jovem, inclusive muito interessante, porque nomes que hoje estão muito conhecidos. E algumas pessoas, eu fico muito feliz, de ter pressentido na época quanto eram talentosas.

Esther- Por exemplo.
Nélida- Não... foram vários, vários companheiros que nunca tinham publicado, e eu os publiquei pela primeira vez. Eu arranquei muita coisa de gaveta.É que eu tenho medo de esquecer alguns nomes.
Esther- Em que jornal carioca você trabalhou primeiro?
Nélida- “O Globo”. Foi como estagiária, como estagiária.
Esther- Você então publicou “ Guia-Mapa” para mantermos a cronologia.
Nélida- “Guia-Mapa” saiu em 1961, “Madeira feita Cruz”, em l963...
Esther- Vamos nos deter em “Guia_Mapa”.
Nélida- Você não acha que está muito atrás? Você pretende cobrir toda a minha trajetória?
Esther- Não se incomoda?
Nélida- Não...não... não, é que eu sinto tudo tão longe...
Esther- Então vamos trazer para mais próximo. “Guia-Mapa”como surgiu? O impulso que te levou a criar e qual o teu método de criação, qual teu método de trabalho nessa ocasião?
Nélida- Bom. Como eu lhes disse, sempre escrevi, desde menina. Eu me lembro quando eu tinha lá os meus 15, 16 anos, a minha grande paixão era, o meu grande cenário de vida era o Teatro Municipal, era o palco do Teatro Municipal.
Freqüentava os bastidores. Eu conhecia tão bem o Teatro Municipal que quando eles interditavam a entrada, para impedir que algumas pessoas do público fossem até os camarins, eu conhecia as escadas internas do Teatro. Todas as escadas que os engenheiros os técnicos conhecem, eu conhecia na época.
Eu conhecia os interiores do Teatro Municipal, o arcabouço, as entranhas... Era como estar em casa, estar no Teatro Municipal! Era o meu grande mundo, o meu grande cenário, era onde eu me sentia mais estimulada a viver. Eu desenvolvi com mais plenitude meu imaginário, minha potencialidade humana. Onde, de certo modo, eu me tornei, ou pude ser, mais do que em qualquer época, sensível. E, a partir dali eu fui compreendendo a sensibilidade humana. A sensibilidade do humano!
Então, nessa época, para não interromper a nossa narrativa, claro, eu sentia que estava, se vocês me permitem a palavra, que aí estava a força do destino. Eu sentia que, ao ser escritora, eu não sabia ainda, exatamente, o que era ser escritora, que ser escritora era uma coisa muito difícil, que se eu fosse por esse caminho, seguisse essa trilha, eu estava escolhendo o mais difícil, o mais perigoso, embora talvez o mais pleno e mais completo, mais múltiplo e mais policêntrico, entende?.
Aí, eu não sabia ainda de que modo você escreve. De que modo você dá forma ao que você pensa, de que forma eu abrigaria um mundo tão rico, que eu sentia existir, não tanto dentro de mim, mas aquilo que eu via, que eu enxergava e que eu queria traduzir.
Eu me lembro que eu tinha um hábito muito interessante à época. Isso eu acho que nunca falei para ninguém. Falei uma vez só, num ambiente muito restrito.
Sobretudo aos sábados e domingos havia uns programas musicais, não sei como eles são agora, na rádio Ministério da Educação. Inclusive um deles era atendendo aos ouvintes. Eu inclusive, eu não somente ouvia todos os programas de música, como escrevia para eles. Porque muitas dessas músicas eu não tinha esses discos. Não podia ter tudo, não é? Enfim, tinha uma mesada, eu tinha limitações. Não é isso? Então eu era tão voraz que queria ouvir tudo, queria abranger, abarcar todas as formas de comunicação. Eu não tinha como. Então eu escrevia.
E ficava, me lembro muito bem, perto do rádio, eu fiquei grandes tardes de sábado e domingo assim. Era engraçadíssimo, porque eu ligava o rádio, aí, eu tinha uma maquininha, a minha máquina hermes que
eu falo no final do livro, minha Hermes baby antiga, eu botava assim diante de mim, mas era engraçadíssimo, com os papeszinhos ali, eu escrevia belíssimo à máquina, l4, l5 anos, pegava e escrevia à jato, ficava assim atenta, até que começasse a música, desde àquelas músicas mais exuberantes, era uma época de mais sofisticação, então eu pegava desde um Beethoven, que sempre eu achei finíssimo para afinar meus sentimentos e tudo, eu botava o papelzinho e ficava esperando. Quando começava a música eu era um motorzinho, veja só! impressionante não é? mas eu estava preparada! e eu não sabia o que escrever, uma coisa estranhíssima, eu não sabia o que escrever, porque não eram histórias que eu contava, absolutamente. Eram exercícios de imaginação, eram exercícios imagéticos, eram exercícios metafóricos. Eu tinha... eu era... uma verdadeira usina de imagens! Como eu nunca mais tive até hoje!
Dizem que eu tenho muito, mas eu acho, em relação à época eu sou um ser pobre, sou uma escritora profundamente pobre em relação ao que eu tinha, ao manancial da época.
Então eu me lembro que enquanto a música durasse, durava o meu texto. E o rítmo frásico, a pontuação, vamos dizer o compasso, a marcação binária de texto, as frases longas, frases mais curtas, variavam segundo a música. Mas era um reflexo! Eu procurava, vamos dizer, dar palavras à música.
Assim como Goete dizia que a arquitetura é música petrificada, eu achava que o texto petrificava a música, uma vez que eu desse existência a ele.
Então, acabava aquela música, por exemplo, arrancava o papel, botava de lado, aí botava outro papelzinho e esperava a próxima música. Então eram vários exercícios.
Eu não contava uma história. A história não me interessava à época. Eu fiz uns contos que guardo até hoje.


Esta narrativa vem pontilhada por onomatopéias, descrevendo a rapidez da datilografia, a retirada do papel da máquina, nos revelando uma Nélida mais alegre, mais solta e, porque não dizer, até com seu lado, me atrevo a dizer, moleque, bem traduzido em seu olhar fotográfico nas orelhas dos livros. Reparem!


Esther- E daí surgiu “Guia-Mapa”?
Nélida- Não não. Eu vou te contar. Antes disso eu escrevi uns contos ultra convencionais, que eu tenho dois até hoje, guardados. A maioria eu joguei fora. Mas eu tenho dois contos de 14, 15 anos ou 16, mas não podiam ser mais convencionais. Bem feitinhos, bem escritinhos, que eu acho que para a época estão muito bem!
Mas eu senti o seguinte: que não era esse meu caminho. Para escrever aquilo eu preferia realmente não escrever. Eu sentia que aquilo que eu queria tornar visível não encontraria saída através daquele convencionalismo de linguagem. Entendeu? Não dava. Não dava saída.
Então, de certo modo, quando eu comecei a fazer esses exercícios, como eu chamo esses exercícios em relação à música, vamos dizer, levada pelos impulsos musicais, eu estava me aproximando do meu destino de ficcionista. E quando eu, afinal, quis contar uma história, eu tinha essa base relativamente boa. Eu tinha desestruturado toda a linguagem oficial que eu tinha, e que aparece nesses meus contos, Eu tenho a prova completa! Eu guardo esses dois contos. São a prova absoluta.

Esther- E esses trabalhos de criação?
Nélida- Ah, não, esses eu não tenho! Fui boba, esses joguei fora. Uma bobagem. Eu lamento, porque acho que teria sido importante para mim eu me encontrar, na medida que eu prolonguei, na medida que eu interrompi, em que medida eu fui criando modos distintos em relação àqueles exercícios musicais. Mas eu não tenho nada. Eu guardo sim, esses dois contos muito convencionais. Esses eu guardo!
Então houve essa parte na minha vida.
Aí então eu quis contar essa história do Arcanjo e da Mariela. Mas eu precisava, pra contar àquela história, eu tinha que criar uma linguagem, eu tinha de fazer certas rupturas, inclusive rupturas sintáticas.
Foi um atrevimento imenso, uma audácia muito grande de minha parte, eu acho, mas eu, eu não tinha nem escolha. Pra, pra.... eu só seria escritora à medida em que eu contasse a história daquele modo. Eu tinha de fazer essa trajetória pessoal. Era rigorosamente intransferível. De modo que... por isso que eu lhe disse no começo, eu acho que toda minha história é muito coerente.
Você não vê concessões em minha vida, em termos de minha obra! Pode ser que eu faça daqui alguns anos um outro texto assim para que você me venha a dizer, é diferente! E eu digo: ótimo, mas veja por favor o que eu já fiz antes
“ Tebas” é uma ruptura em relação aos anteriores. “Casa da Paixão” idem. “O Fundador” idem. “Tempo das Frutas” foi muito importante porque interrompeu uma simetria que se estabalecera entre “Guia-Mapa” e “Madeira”, de linguagem. “Tempo das Frutas”foi um intervalo muito grande, uma linguagem mais suave, uma aproximação muito grande das coisas. As coisas ficaram muito mais suaves, muito mais existenciais. Tiveram mais concreção.
Mas eu acho que há uma coerência histórica muito grande, de um ser que está buscando pautar sua vida por interrupções, e pequenas rupturas, pequenas crises.
Então, eu acho que o texto resulta no fato de se estar sentado na vida. Estar permitindo que o mundo te macule! Eu acho que aquilo que você falou é muito bonito, eu te agradeço muito por achar que meu texto era sábio... Não sei se é, fico muito feliz por você ter me dito isto...

Esther- Eu não disse seu texto, eu disse você!
Nélida- Ou eu estar, estar sábia, mas eu, no sentido que o texto me precedeu. Quando você me enxergou, você não pode dizer isso, logo no início, então supostamente era o texto, porque você estava sem outra referência a meu respeito. Então eu passei isso para você, a cronista Nélida.
Houve uma risada farta e alegre da cronista Nélida.
Esther- Mas eu tenho referências anteriores a seu respeito Nélida!
Nélida- Então! Isso é o que realmente eu penso. E por isso eu sou uma autora, que às vezes eu fico, às vezes posso dizer até assim ,Meu Deus, nunca mais vou escrever, eu sinto uma certa tensão, eu tenho muitas responsabilidades, em relação a certos compromissos assumidos..., mas eu não tenho angústias infinitas em relação... torturantes, em relação ao texto futuro. Eu sinto que, eu acho, que eu vou escrever até sempre.
O que vai acontecer é o seguinte: é que eu estarei talvez me precipitando num abismo, isto é, talvez meus textos estejam piorando com o tempo, que eu própria não saberei, em que medida eu estou me aproximando ou me afastando do meu período áureo. Só a história futura é que me conferirá isso, mas eu não estarei talvez viva. Eu própria não sei... meus contemporâneos não sabem também! Só àqueles que sobrevivam a mim poderão dizer: Nélida melhorou neste ano ... alcançou uma possível plenitude, uma possível realização maior... enfim, o que me interessa é o seguinte: eu não separo texto de vida . Então eu circulo com as mesmas dificuldades com que eu circulo na vida, com essas mesmas dificuldades eu circulo no texto, (respiração profunda) . Talvez até, eu deva confessar que eu tenho mais paciência com o texto do que eu tenho com a vida, com a vida cotidiana. Acho eu.
Mas eu fui uma autora muito marcada! Eu fui uma autora estigmatizadíssima, porque assim,... meu livro foi um divisor de águas na época, se lembra? Uma parte da crítica me consagrou, me disse coisas maravilhosas, outra parte me arrasou.
Eu fui, e isso até é bom ser dito aqui em público, eu me lembro de ter ido à noites de autógrafos, à tardes de autógrafo, e ser apresentada a autores famosos, alguns conhecidos na época, uns três deles terem me dito: ah, você é a Nélida Piñon, àquela autora que escreve que ninguém entende?

Esther- Isso te deixou muito magoada, eu me lembro, numa determinada época.
Nélida- Não. Me deixou, vamos dizer, eu sempre fui muito polida, e minha polidez não é só uma coisa natural, mas é uma posição intelectual minha! O fato dele ter me dito isso era um problema dele, não meu! Eu vim para dizer alguma coisa, eu tinha que me arriscar! Então, se ele pensava inconscientemente que aquilo...
quem, diz uma coisa dessas está marcando o outro profundamente! é quase um convite à desistência...
Eu nunca desisti! Nada me servia pra desistir! Ao longo dos anos. Inclusive, ainda há muita gente que fala em Nélida Piñon, admira Nélida Piñon, comenta Nélida Piñon personalidade, mas não lê o texto de Nélida Piñon.
Eu acho um preconceito cultural injusto, inadequado e desonesto. E tudo pelo fato de eu ter tido uma coragem exemplar, na época, em 1961, de ter lançado um livro que buscou quebrar todas as convenções de época, entende? Então as pessoas aqui no Brasil criam, estigmatizam, criam rótulos, e jamais imaginam que esse rótulo possa ser retirado, e jamais se dão oportunidade e ao outro de ter transformado e, sobretudo, não se dão a oportunidade de fazer uma avaliação intelectual de si mesmo. Porque se eles tinham limitações na época, em 1961, pode ser que em 65 não tenham mais, ou em 70 ou em 78.
De modo, que eu padeci não somente das limitações que são impostas a uma mulher escritora, entende?, como também pelo fato de eu ter estreado com um livro anti-convencional, um livro chamado entre aspas, difícil!
Então, Nélida Piñon personalidade tem livre franquia. Nélida Piñon escritora, para alguns meios, não me dão oportunidade. Não me dão oportunidade, Não o espaço cultural, que não estou pedindo esse espaço. Espaço cultural eu não tenho que pedir, eu passo por ele, na medida em que aquilo que eu digo corresponde a uma realidade brasileira, que aquilo que eu digo realmente, é uma combinação de interesses do meio que eu represento. Fora disso eu não teria direito à qualquer espaço... O meu espaço é o espaço honesto, é o espaço daquilo que eu represento-.
Agora, o que eu percebo é isso, é que eu realmente, luto por meu espaço. Que o espaço ninguém te dá! Você tem de passar através de suas idéias, de sua coerência, de seu mundo ético, da sua integridade profissional, daquilo que você realmente representa, e do quanto você se assumiu como escritor social.

Esther- Espaço você conquista.
Nélida- Exato! Mas o que eu dizia era o seguinte, o que eu não posso compreender é que se estabeleçam preconceitos, em relação inclusive ao chamado, como dizem, escritor menor, escritor médio, escritor grande, é... estabeleçam preconceitos contra autor que escreve para a grande massa, ou contra autor, chamado, vamos dizer por exemplo, uma Adelaide Carraro, ou contra José Mauro Vasconcelos.
Eu acho que o país deve ser, o país é tão mais rico, na medida em que tem o seu espaço cultural
preenchido por todos os representantes. Então eu acho que há espaço para uma Adelaide há espaço para José Mauro ou Cassandra Rios, para todos nós, entendeu?
E quando por exemplo, numa entrevista em Porto Alegre, levantei a proposta da censura, que todo mundo já conhece minha posição intransigente contra a censura, eu também defendi àqueles companheiros chamados escritores menores, porque suas, suas... ah, sua linguagem literária é menos cuidada, ou porque enfim são chamados meio, semi- pornográficos etc... Mas eu defendo todo o escritor, eu defendo a existência de todo escritor, porque no dia em que eu não defender esses escritores, eu estarei inserida num contexto que eu considero estalinista.
Isto, eu não me permito de modo algum. Porque eu seria a primeira a entrar na fogueira, e comigo vários dos meus companheiros, os mais respeitáveis possível. Então a idéia, concluindo àquilo que eu dizia, é que realmente nós teríamos que tentar fazer uma revisão permanente em relação às nossas leituras. Abrir espaço para todos nós!
Realmente, e fazer revisões. Eu acho fundamental para o escritor, para o artista, fazer revisões bravas e corajosas, e até assim com... com, com, não é coragem, não é penitência, ... é humildade. Com grande humildade!
Nós não somos tão grandes como pensamos ou aparentamos ser! E não podemos inclusive esquecer que o tempo nos supera. Nós somos modestos acréscimos do tempo.


A então “estigmatizadíssima” escritora Nélida Piñon, foi, dia após dia, quebrando todas as barreiras, recebendo prêmios, condecorações e, por fim, ocupou a Presidência da Academia Brasileira de Letras, um lugar, tradicionalmente ocupado por homens.
Se Dinah Silveira de Queiroz, quebrou a barreira da presença de mulheres, ocupando uma cadeira na Academia, Nélida foi além, tornou-se presidente da Casa . E, durante sua gestão, houve aniversário da Academia, modernizou-a e a fez tão atraente que os jornais passaram a focalizá-la , não só como um clube seleto, com seu já famoso chá das cinco, mas uma casa viva, pulsante, onde mora a história da vida brasileira. Como notícia!
Contarei como entrei em contato com a escritora.
Era o ano de l961. Editava a página literária do primeiro jornal tablóide do Brasil, se não me engano, impresso em cores, numa época em que esta opção gráfica não havia. Usavámos cores chapadas, nas páginas, ou no corpo do texto. Era um jornal semanal, o “Praia Grande em Revista”, criado pelo publicitário Carlos Couto, em sociedade com os irmãos Falcão, que possuíam uma gráfica com o mesmo nome, Gráfica Falcão. A cidade, Niterói, na época capital do Estado do Rio de Janeiro.
Nélida acabara de lançar “Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo”.
Minha professora de português Diva Rocha, no Liceu Nilo Peçanha, preparou um longo trabalho de análise literária, que foi publicado em várias edições do jornal, sobre a autora e seu primeiro livro, ocupando algumas vezes, se não me falha a memória duas páginas inteiras.
No entanto, como editora da página literária e, posteriormente, como editora do jornal, era minha função dar ao artigo um tratamento jornalístico, para que sua leitura ficasse mais acessível aos leitores do jornal. E assim, pedi permissão à autora , Diva Rocha, para que procedesse à revisão do texto.
Após algumas negativas, e com a minha argumentação de que seria impossível publicar o artigo, caso não sofresse algumas adequações, ela enfim concordou com as normas de redação do jornal, que podem ter tirado o brilho de seu trabalho mas, certamente, o tornou mais acessível aos leitores do jornal-revista.
Mais tarde, responsável por um trabalho na Universidade Federal Fluminense, deveria trazer artistas de todas as áreas para debater a cultura brasileira, naquele momento. Isso já em l966, após a revolução, em pleno “boom” da literatura latino-americana, com o sucesso de “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Marques.
Resolvi por um debate sobre esta literatura do fantástico, latino-americana, e convidei quem? Diva Rocha!
Convidei-a para montar o debate, e ela o fez com perfeição, convidando entre outros autores como Carmem da Silva, Bella Josefh, Eliane Zaguri, a autora de “Guia-Mapa”, Nélida Piñon. Assim conheci Nélida e me interessei por sua obra.
Esta a história. Que espero, tenha contado com justiça. Apesar de resumida, sem traições da memória! Continuemos com os fatos.

Com Zezé Motta e Lucia Minners



Certa feita combinei com minha amiga, Solange Dadauti, que nesse momento, se não me engano, ocupava um cargo de chefia na Rádio Roquete Pinto, dirigida pelo Maurício Sherman, creio ter conversado com ele também, e recebido seu aprovo, fazer um programa chamado “Fala Brasil”. Seria assim: um artista de qualquer outra área leria trechos do trabalho de um escritor e, o escritor leria outro trecho de seu trabalho, e ambos seriam entrevistados, de preferência seguindo-se o tema lido. No terceiro bloco do programa o povo seria ouvido, sobre os dois artistas. Leria alguma coisa do escritor, e daria sua opinião.
Resolvi começar por Nélida Piñon e Zezé Motta. Tenho até hoje a fita gravada. E da entrevista com Nélida Piñon participou uma grande amiga, Lucia Minners, que editava a página literária do Jornal “Tribuna da Imprensa”, e que era responsável pelo lançamento de nomes , hoje importantes, de nossas artes.
No entanto a autorização para o programa ir ao ar não saía.
Voltando para casa, do trabalho, vejo imensos out-doors anunciando o censo de l979, ou não lembro mais a data. Apelo do censo: “Fala Brasil!”
A MPM, agência de publicidade que havia trabalhado a divulgação do recenseamento para o Governo Federal, tinha um amigo comum meu e da Solange Dadauti, que criava lá. O nome do programa havia sido aproveitado por eles. Ou então foi tudo mera coincidência. E o programa não saiu. Um detalhe: eu o iria fazer gratuitamente, por puro prazer!
Hoje, (repito que estou republicando a entrevista, este tele-jornal acabou) existe na TV Record um programa jornalístico com este nome. Pretende seu diretor fazer um tele-jornalismo diferente, meio jornal, meio revista. Gosto de assistir. “ Fala Brasil”! Apesar de ser um dos muitos tele-jornais que funcionam mais como Assessoria de Imprensa da Presidência da República e, do PSDB. Mas há um humor paulistano, veiculado pelo tele-jornal, que me delicia!
Eu não tive a perseverança de Nélida Piñon. Magoada, desisti.
A primeira entrevista foi com Zezé Motta que nunca havia lido Nélida Piñon. No dia, ela estava muito gripada e, mesmo assim, não desmarcou a entrevista.
Esther- Zezé você lê?
Zezé- Eu leio pouco. Lamento muito, mas eu leio muito pouco. Eu gostaria de ler mais. Às vezes por falta de tempo.E às vezes já me peguei interrompendo uma leitura porque às vezes estou tão preocupada com mil coisas que acabo não conseguindo me concentrar. Mas é uma coisa que eu quero realmente tentar, ter uma disciplina, conseguir ler um pouco mais.
Esther- O quanto mais a leitura exige de você, mais do que ouvir sons ou ver imagens ?
Zezé- Exige mais concentração, né? mais tempo. Não sei! Leitura é uma coisa muito importante! As coisas que você vê, se você perder o fio da meada, tem sempre alguém que também viu, e que vai te contar direito como é que foi.
Às vezes acontece de eu estar vendo um programa de televisão em casa e, ao mesmo tempo, estar conversando com outras pessoas. Às vezes é um programa em que eu estou até interessada. Mas eu não me preocupo. Que eu sei que todo mundo está vendo aquele programa, e o que eu deixar escapar alguém vai saber me contar. ( Ainda não era o advento do vídeo-cassete, acessível).
A leitura não! É importante você não perder o fio da meada, você realmente entender o sentido, se envolver com a história.

Esther- É um momento muito individual entre o criador, o autor, e o criador, o leitor.
Zezé- Exatamente. Inclusive uma coisa que eu andei notando em alguns livros que eu li, e depois foram feitos filmes desses livros, como por exemplo “Sidarta”, e eu me dei conta que a gente vai lendo e vai embarcando no clima do autor, mas você faz uma fantasia, que pode às vezes não corresponder até ao que o autor quis dizer, mas você faz uma fantasia em cima dos personagens. Você fica imaginando como seriam fisicamente, ou então pelos dados do autor, você fantasia em cima dos dados do autor.
E essa coisa de ver, não! A coisa já vem prontinha, mastigada pra você, é só digerir. Então não exige um envolvimento tão grande, nem concentração.

Esther- Você já ouviu falar na escritora Nélida Piñon?
Zezé- Já.
Esther- Através de quem?
Zezé- Eu já conhecia esse nome e já conhecia esse rosto que eu estou vendo aqui, no livro. Agora, confesso que não conheço a obra de Nélida.
Esther- Você não se importaria em ler trechos da obra de Nélida?
Zezé- De jeito nenhum! Inclusive porque a partir do momento em que a gente estava combinando este papo , uma amiga minha, Zelinda, me falou com muito entusiasmo, muito empolgada: Que bonito! você vai participar de um programa de Nélida Piñon. E eu fiquei muito constrangida de participar deste programa, sem conhecer a obra dela. Mas de qualquer
maneira você não tenha dúvida de que eu vou ler. Vou ler ainda esta noite. Quer dizer, vou ler agora no programa e vou ler depois.

Esther- Nélida pediu se você leria um trecho da página 48, do último livro dela, “O Calor das Coisas”, lançado pela Nova Fronteira. É um monólogo do conto “As quatro penas Brancas”. Começa exatamente aqui: Rubem...
Zezé- “ Rubem é mesmo um frouxo. Comove-se com qualquer imbecil. E que faço aqui com este Colombo que vendia amendoim e era feliz? Rubem foi-lhe propor uma alforria que se esgotará ao amanhecer. Após o que terá de ceder seu lugar na redação, no apartamento, dar-lhe suas calças jeans. Se não for assim, Colombo enfuna de novo as velas e volta a respirar os odores fétidos desta baía. Sou tão estúpido quanto Rubem, nessa avenida inviável dessa cidade sitiada. Ele acusa-me de ser o carrasco que o corrompe diariamente. E só porque lhe faltam forças para comprar minha alma e imitar os meus métodos. Pergunta sempre se lhe mastigo a carne por conta do seu sabor, ou da minha fome. Ofende-me, mas eu o quero perto. Ele é o socorro que tenho. Estica as mãos quando caio bêbado na calçada. Não tem vergonha de mim, sacrifica o seu melhor lenço para limpar-me a cara, a mesma cara que igualmente registra a sua aflição.
Se o traio às vezes, é para chamar-lhe a atenção. Afinal, sou Pedro, não o quero distraído comigo, e com a vida. Ou desligado do mundo só porque vivemos e conhecemos o mesmo fracasso. Serei sempre o primeiro a abatê-lo com o chumbo de caça. E não hesito em raptar suas mulheres logo que ele deixa o apartamento. Só não me sirvo da sua própria cama. E, para penitenciar-me, conto-lhe tudo. Ele ameaça matar-me, vira-me a cara. Não aceita desculpas. Com tanta mulher você escolhe a minha, vai ver quer dormir comigo.
Será mesmo que quero conhecer o seu gozo e o seu suor através destas mulheres? Nessas horas, fico furioso, digo-lhe que estou pronto a perdê-lo. Não me fará falta, e não permito ofensas neste nível. Exijo, sim, o amigo que me estimule a abandonar a ilha em que estamos todos encarcerados, e transar por terras onde ele, por exemplo, terá chegado primeiro e maravilhou-se porque a primavera o havia precedido. Rubem comove-se, conhece a lisonja quando o chamam de pioneiro. Quer enxergar o mundo primeiro que eu. Sua vocação para o esplendor é antiga, por isso chama os filhos das quatro estações do Vivaldi. Nestas horas, me pede dinheiro, assegura-me assim que estou perdoado. Posso de novo freqüentar-lhe a casa, devolve-me a chave com o calor ainda do seu bolso, ali esteve o tempo da nossa desavença.”

Zezé- Que bonito! hm hm. Muito bonito.
Esther- Você notou como fica fácil ouvir alguém dizendo? é bem mais captável o falar, a interpretação do texto... Agora, eu te pergunto, como fazer o leitor sentir que ele pode chegar a interpretar um texto, como se falasse, ao lê-lo? Você saberia me responder?
Zezé- Não sei. Comigo a coisa funciona meio que na base da fantasia mesmo. A partir do momento em que aparece um personagem, ao mesmo tempo em que estou lendo, fico meio que me projetando nele, me colocando...
Esther- Você poderia ler este trecho do conto “Finisterre”. Fala do espetáculo de uma cultura. E nós estamos tentando fazer o espetáculo, triste talvez, de uma literatura brasileira que não é lida.O trecho é da página 103.
Zezé- “Inquieta pensei, acaso me quer aplaudindo o espetáculo de uma cultura a que não posso pertencer, e isto porque vim de muito longe? Ele prosseguia no combate, queria a velha de volta à terra. Dizia seu nome e aguardava que ela obedecesse. Finalmente, ela abriu os olhos, sorriu e disse, para eu jamais esquecer, ah, meu amigo, esta é a afilhada que veio daquela América que tragou nossos homens!
O retorno à vida por parte da velha obrigou a família a festejar em torno da cama. Haviam vencido um dia, razão pela qual transferiam a cerimônia fúnebre para a manhã seguinte. Hoje não tinham por que preocupar-se. A velha acabara de triunfar sobre a morte. E eu testemunhara o momento histórico de uma luta iniciada noventa anos atrás e cujo desfecho previa-se para segunda-feira. O padrinho alegrava-se, vejam, minha afilhada trouxe sorte, isto prova que ela originou-se deste povo. Observem as feições do seu rosto que preservei com a minha máquina fotográfica!”

Esther- É uma situação interessante. Uma velha tenta safar-se da morte, assim como a nossa velha literatura. Que máquina fotográfica irá registrar esta luta? Será a voz? Será tua voz a máquina fotográfica?
Zezé- Não sei!...
Esther- “O Sorvete é um Palácio”, página 143.
Zezé- Não acho que minha voz vá salvar...
Esther- Mas certamente irá fotografar.
Zezé- Fotografar! Ah sim. Eu quero de alguma maneira contribuir para isso!
Esther- Você está contribuindo e nós te agradecemos muito.
Zezé- “É uma exaltação nova esta de agora. Desmancha os nervos e me deixa terna. Logo eu que perdi a vida entre risos nervosos. Aqui estou a estremecer, mas sem ir ao chão buscar ciscos, segurança, falsas emoções. Serei ingrata com a vida só porque quero afastar os galhos que desequilibram uma árvore solitária?
Ah, como a memória é uma carícia fugaz. Confundo datas, acontecimentos, e as raras mãos que pousaram em meu rosto. De quem era mesmo a mão que me fez sofrer quando se afastou? Tudo parece irmão do vento. A verdade é que jamais identifiquei os meus pertences nesta imensa herança sem nome que é a terra.
Na praia, provei do sal e da alegria. Esquecida do espelho a proclamar que a carne não é mais um sortilégio para as mulheres de minha idade. Mas porque deveria eu assustar-me com o tempo, este calendário desprezível. Que compromissos tenho com ele? Desço os degraus com a mesma contrição de quando ainda estava a subir. Talvez o pai responda por tal desprendimento. Instigou-me desde pequena a enfeitar as estrelas, e não é nossa missão na terra adornar com volúpia e açúcar-cande este bolo que nos foi legado?”


Como já havia dito Zezé Motta não teve a oportunidade de ler antes os texto. Foi tudo de improviso. Neste último parágrafo ela se deparou no fim do período com um ponto de interrogação. E não o fez. No entanto, por achar o texto bonito repetiu-o várias vezes, até encontrar a entonação correta e terminou dizendo que também era do signo de Câncer.
Esther- A Nélida, se não me engano é de Touro. Você é de Câncer.
Zezé- Agora, lendo es coisas de Nélida fiquei mais triste ainda de não ter estado em condições de ir à casa dela e conhecê-la pessoalmente. Mas outras oportunidades acontecerão, certamente.
Esther- “Disse Um Campônia à sua Amada”, página 162.
Zezé- “Quem sabe me chamas de selvagem porque te beijo como você quer, o que te impede de reclamar a própria custódia. E que culpa tenho, vamos, admita, ah, e sou selvagem ainda porque fecho os olhos bebendo champanha enquanto arrebatos verbais esgotam a última gota no cristal de vinte e três vibrações. Medito então, ser selvagem para ela é um alívio, e para mim uma carga. Ou será para ela o retrato do seu amor, e a certeza do meu destino.
Claro que origino de uma montanha onde se apascentam ovelhas e cabras, sempre sob a proteção do cajado, maçãs, e do pão de milho, e enquanto dura a luz natural da terra. Posso pois arrancar meu coração para satisfazer a tua vaidade. E o que não faria para afirmar a tua beleza? Não quero dúvidas quando te olhes no espelho, este lago traiçoeiro que por mim dispensarias, para se consultar unicamente em meus olhos, amigos, sofredores e mais velhos.
Você ri quando lhe asseguro ser a única referência do teu corpo. Meu corpo é meu corpo, diz você querendo falar, isto sim, domínio. Finjo não perceber, peço reconsideres, como admitir o próprio corpo se o meu não te confirma a pele, o gosto de sal, as pulsações da vida nos extremos nervosos, os olhos que se cerram com estremecimentos repentinos. Você resiste, não insista, não importa o que conquistes em mim no futuro, sou a única a avaliar a própria beleza, mesmo porque há muito você está perdido pelo amor.”


_ Nossa , pena que foi mal lido esse trecho, porque é lindo!, cobra-se Zezé Motta.
E então repete a leitura. Porque o texto é muito bonito para que seja mal lido.
Nesta ocasião Zezé Motta se preparava para apresentar o espetáculo “Dengo” no Teatro Casa Grande. E, durante a leitura, Nélida lhe telefonou deixando um abraço.



“O Calor das Coisas” foi lançado em l980 e o preço do livro, na época era de Cr# 230, não lembro mais se mil ou milhões.
Tempos difíceis. Marly Medalha já viera de São Paulo, desabalada, após exercer na imprensa da cidade diversas editorias importantes e, enlouquecera. Eu também já tivera minha cota de penalidades. Fora presa no Doi-Codi de São Paulo, por ter feito uma reportagem sobre a morte do estudante Edson, no restaurante universitário Calabouço. Quase ficara louca também. Mas um filho e a sonoterapia me salvaram, talvez, não sei. Nesta ocasião fui visitar Nélida Piñon em seu apartamento, agora no Leblon em outra rua, e ao me receber ela falou: Lupe morreu. De câncer. Amparada pela Lígia Fagundes Teles. Demorei um tempo para me acalmar e localizar as pessoas. Uma parte de minha vida eu esquecera, após a prisão. Lupe Cotrim Garaude, poeta que conheci no encontro de escritores no Paraná, quando fui representando a Universidade Federal Fluminense, e que queria ir de trem à Paranaguá. Momentos bonitos. Me deu um livro seu. Tenho até hoje, de poemas lindos. Lupe morreu.
Tempos difíceis. Mais tarde, estava voltando de Belo Horizonte, Minas Gerais, onde morei por uns dois anos e tentava colaborar com a Revista “Inéditos” que, como tantas outras, veio a falecer.
Um dia, lembram Ana, Fernanda e Sônia? liguei para o então Ministro da Justiça Armando Falcão, usando meu sobrenome, para lhe pedir a liberação da revista que a censura, pela enésima vez, mantinha engavetada?
Ah sim! Nessa época, toda a mídia circulava apenas com o aval dos censores. Havia censores nas redações dos jornais, rádios e televisões. Publicações alternativas, de arte ou não, como a “Inéditos” eram enviadas para a censura do Distrito Federal que decidia o que poderia ser ou não publicado.
Clarice Lispector já havia morrido prematuramente, tendo por acompanhante a amiga Nélida Piñon. Em Belo Horizonte recebi um telegrama da amiga Carmem de Silva: “Venha. Clarice morreu.” Fui e vi com tristeza a tristeza de Nélida e sua convicção em não se afastar da amiga até que o seu corpo baixasse à sepultura.
John Lennon já havia dito, há anos atrás, que o sonho acabara.
Era a época do prendo e arrebento do Presidente da República, General João Baptista Figueiredo.
As Universidades estavam sucateadas e as eleições diretas para Reitor, já estavam sendo pensadas para ser introduzidas no campus universitário, que estava sendo construído com empréstimos do Banco Interamericano de desenvolvimento , todos os campus, de todas as universidades brasileiras, para tristeza de muitos que acreditavam ser esta uma das causas do fim da Universidade como instituição de ensino, e sua revitalização como prática de política administrativa.
Os jornais haviam há muito se transformado em grandes empresas, com máquinas off-sets (muitos se endividaram para comprá-las). O interesse era ter um belíssimo parque gráfico e, por isto, pagavam salários baixos a jornalistas recém saídos dos cursos de comunicação, e dispensavam os mais antigos, melhor remunerados, que deixavam o Brasil para trabalhar em países de língua espanhola ou portuguesa. Quando não eram banidos, ou se auto-exilavam, para poupar a vida.
A imprensa toda funcionava com pré- realeses, como assessorias de imprensa dos governos.
Não havia espírito crítico. O mundo estava apático. Após as muitas lutas políticas perdidas.
Década dos mauricinhos e das patricinhas, do politicamente correto, da distensão lenta e gradual na política , rumo à democracia, se é que ela ainda poderia existir, se ainda existe.
Não havia mais os festivais da MPB, e filmes como “Je vous salue Marie” eram proibidos de ser exibidos em todo o território nacional. Os escritores jovens continuavam com pouco espaço nas editoras, mas já surgia algum. Glauber Rocha morreria no ano seguinte. Leila Diniz já morrera. Todos de desesperança!
O Brasil , um pesadelo!
Lucia Minners havia deixado o suplemento literário do jornal “Tribuna da Imprensa “, que editava, ou havia sido deixada, e ia embora para a cidade de Campos, no Estado do Rio, onde morava uma irmã. Antes ficaria uns dias lá em casa.
Preparei um pão integral, amassado com minhas mãos e posto no forno por Tatão, e o levamos para comer com Nélida Piñon, entrevistá-la, complementando o trabalho para o “Fala Brasil” que nunca foi ao ar, ou sequer editado. Estou reproduzindo as fitas gravadas, como o foram, no momento.
Eu acredito que elas contém registros históricos que devem ser recuperados. Este programa, para melhor aclarar os acontecimentos, seria feito em l980.


Esther- O que você sentiu Zezé agora, que leu alguma coisa de Nélida Piñon? O que te despertou esta leitura?
Zezé- Bom. Despertou a vontade de conhecer melhor as obras da Nélida e também a importância desse programa, dessa batalha, que é de vocês, ou nossa, para que outros escritores, da importância e da sensibilidade da Nélida, não deixem de ser llidos.
Esther- Esta batalha é nossa Zezé, nossa!

Nélida ouviu o teor da gravação feita com Zezé Motta e iniciou seu depoimento.

Nélida- Na sociedade, de um modo geral, você é muito catalogada pelo que você diz, você é classificada pelo que você pensa, pelo teu dinheiro, pelo teu sexo, pelas tuas opções pessoais, pela tua idade e sobretudo a mulher. A mulher, inclusive. está assim, vamos dizer, fatalmente condenada a uma possível solidão, ou ao abandono, a uma desvalorização social depois de uma idade, vamos dizer, depois dos 40 anos.
Então, evidentemente, que no momento que há essa desvalorização é porque o mundo masculino determinou que a partir do momento em que a tua biologia perde o seu vigor, a sua capacidade de reproduzir, você é um ser menor, desvalorizado socialmente. Então claro está que por esta razão, creio eu, que as mulheres, que são seres jovens, aos 40 anos, que são pessoas luminosas aos 50, não vão querer dizer a idade. Porque enquanto a batalha não estiver solucionada, enquanto os conflitos não estiverem realmente aclarados, de modo que, eu acho, eu entendo muito bem, que as mulheres não se sintam tão à vontade em dizer a idade, muitas vezes. Porque é um estigma na nossa sociedade, se você está na faixa dos 30 ,na faixa dos 40, na faixa dos 50.E se você já está na faixa dos 50, você já está mais ou menos quase dentro do cortejo fúnebre, não é isso?

Esther- Nélida Piñon, profissão escritora, livros publicados ela vai mencionar.
Nélida- Ora, a esta altura são nove títulos publicados. O primeiro saiu em l961, o romance “Guia- Mapa de Gabriel Arcanjo”; o segundo, “Madeira Feita Cruz” em l963; o terceiro “Tempo das Frutas”, meu primeiro livro de contos. O quarto, “O Fundador”, romance. O quinto, “Casa da Paixão”, romance, o sexto “Sala de Armas”, contos; o sétimo, “Tebas do meu Coração”, romance, o oitavo, também romance, chamado “A Força do Destino”. E esse agora, recém publicado é o nono e é conhecido por “O Calor das Coisas”.
Esther- Nascida onde Nélida?
Nélida- No Rio de Janeiro. Brasileira, brasileiríssima, de origem espanhola.
Esther- Que briga ser brasileira e escritora!
Nélida- Mas eu acho que é uma briga necessária, é uma briga que eu quero levar até o final da minha vida.
Esther- Porque a escolha, porque a necessidade da briga?
Nélida- Porque nascer no Brasil, significa que nós nascemos num país que não está solucionado. É um país difícil, áspero, um país que não se entende, fragmentado, injusto, mas também ao mesmo tempo delirante, maravilhoso, violento e amável.
É um país que promete grandes transformações e eu, com a minha modéstia assim de escritora, gostaria de estar presente e assistir cada instante, cada metamorfose.

Esther- Há quanto tempo você escreve?
Nélida- Eu escrevo desde criança, mas a minha primeira publicação, meu primeiro livro saiu em l961. De modo que no ano que vem estarei fazendo 20 anos de publicação.
Esther- E como começou o primeiro trabalho?
Nélida- Sabe? começou para mim, talvez, logo depois do meu primeiro vagido. Porque a literatura, por mais que a expliquemos, por mais que nós escritores pretensiosos , arrogantes, desejemos esclarecer a origem do texto, de onde ele veio, como ele se faz, qual é o seu roteiro, seu processo, há tanto mistério , há tanto enigma na criação que eu só poderia dizer que eu escrevo a partir deste primeiro vagido, porque foi quando eu comecei a viver, e viver é um ato criativo. Quando eu vivo, eu estou escrevendo e, quando escrevo eu estou vivendo.
Esther- E o escritor é arrogante, Nélida?
Nélida- Não. Não significa que ele seja arrogante. Eu quero dizer que todos nós seres humanos nos inclinamos à arrogância e há que combater essa arrogância.
Esther- O que é ser um escritor?
Nélida- Sabe? ser um escritor pra mim não é só uma criatura estética, uma criatura que fixa as realidades, que as descreve, que domina a língua e a converte nesse enigma da linguagem.
É um ser ético. É um ser para mim que tem um grande compromisso com o social. Que articula o social , que articula as realidades, que está nas coisas, e que permite que as coisas estejam nele.

Esther- Como você pretende me atingir, me buscar, enquanto ser social?
Nélida- Primeiramente eu gostaria de confessar, o que me parece uma verdade fundamental, é que o leitor para mim não tem rosto. Há escritores que dizem: eu me dirijo a um determinado público, logo supostamente este público para ele tem um rosto, tem um nariz, tem uma boca, tem uma sociologia atrás desse rosto. Eu não acredito nesse rosto para mim porque eu não sei, eu desconheço quem me vai ler, eu desconheço se a melhor leitura que se fará do meu livro, será a leitura de amanhã, um rosto que está crescendo, um rosto que talvez nesse momento esteja marginal, um rosto que está produzindo um outro ser que me lerá, e lerá outros autores brasileiros.
Eu acho que no momento em que você aceita a existência de um rosto para seu leitor, você marginaliza um país. Você classifica os teus leitores, você pressupõe uma elite de leitores, e eu não quero uma elite, eu não quero um destino para meu livro, eu quero que o livro ganhe o espaço que alguém vai conferir a esse livro. Esse alguém é o coletivo, é todos nós.
De modo que, a partir dessa idéia de eu não saber para quem eu me dirijo, eu gostaria de explicar porque eu estou colocando desse modo.
É que como escritora eu acho que eu me aproprio de um instrumental que é a linguagem que, para mim, é um instrumental socializado, socializante. Toda vez que eu escrevo, não importa que banalidade, não importa que frase, eu estou usando uma enxada que é de todos, que está na rua, eu roubei da rua, eu apanhei da rua, é o fogo do Prometeu. É o fogo! Espero não ser punida como ele o foi, mas é o fogo! É o fogo sagrado das palavras. E a palavra é maravilhosa porque ela está na rua, ela é sagrada e ela é profana. Então eu pego esta palavra. E cada vez que eu pego uma palavra, junto dessa palavra vem um pensamento, vem uma emoção, vem o coletivo.
Se eu me utilizo desse instrumental, repito, logo eu sou uma mediadora, uma modesta mediadora de realidades. Assim sendo aquilo que eu escrevo é de todos, é de qualquer rosto, desde que este rosto brasileiro, tenha oportunidade social de vir a aproximar-se da literatura, de apropriar-se da linguagem, que é um labirinto difícil e que não é de todos, infelizmente, num país tão marginalizado como o nosso.

Esther- Pode-se dizer então, sem medo de errar, que o escritor é a fala do povo?
Nélida- Ah, sem dúvida, sem dúvida. É a fala e a consciência desse povo. Ainda que, infelizmente, considerando-se as condições brasileiras, não é verdade? o povo não saiba que está sendo descrito nesse momento, que suas vidas estão sendo analisadas, estão sendo detalhadas.
Porque em realidade talvez, o que mais me fascina na literatura, é pensar que quando se escreve, você apreende não só o real, você apreende o fugaz, o instantâneo, e passa a existir aquilo que o povo viveu sem ter se dado conta. Então, a partir do momento que existe a literatura, as vidas mais secretas ganham espaço, afloram, e passam a existir
.
Esther- Você frisou bem, mais que a fala também é a memória, talvez mais do que a fala, porque da memória surgirá futuramente uma nova fala.
Nélida- Exato. Porque a fala é um elemento criticável, não é? A fala, o que seria? é a capacidade de vocalizar. Quando você vocaliza, você vomita, você despeja tudo. Não há nada que você economize na fala.
A grande fala pra mim é retumbante, ela não é econômica, ela não se perde na avareza. Ela trabalha a linguagem! mas a grande fala, ela se nutre do excesso, da abundância, ou seja das palavras mais secretas, mais até ignóbeis, das palavras mais
conspurcadas! Mas as palavras podem ser as mais livres de uma língua .


Esther apresentando - Lucia Minners, escritora, literatura infantil, livros publicados a Lucia contará.
Lúcia- “Aninha e João” editado pela Ática de São Paulo e “ João plantador de Cidades”, editado pela Orientação Cultural.
Lucia- Nélida, um dos contos mais bonitos que eu li seu foi um em que, eu não me lembro o nome, mas é um homem que viaja muito e uma mulher que fica na cozinha fazendo sopa, e ele volta de uma viagem longuíssima, e de repente, ele conversando com ela, ele descobre que ela fazendo sopa sabia muito mais do mundo do que ele. Você, antes da entrevista tinha acabado de dizer que gosta muito de cozinhar, então eu me lembrei desse conto. Eu gostaria que você falasse sobre ele, por exemplo.
dizer, uma das mensagens, desse conto, “ Colheita”.Nélida- Ah sim. Eu me lembro desse conto. Ele chama-se” Colheita” e é do livro “Sala de Armas”, um livro de contos.
Você sabe que eu também gosto desse conto, e eu acho que tem assim uma grande crítica social. Analisa o papel da mulher.
Se você me permite, eu de certo modo, poderia colocar aqui a história de Penélope e de Ulisses. Porque a Penélope na sociedade cristã, não é? judaica-cristã, a Penélope é uma mulher venerada, admirada, porque ela soube esperar, ela ficou em casa tecendo, não é? fazia Ah... não seria bem tricô, evidentemente, e à noite ela desmanchava, porque, meu Deus! ela esperou 10 anos, enquanto Ulisses, o rei de Ítaca, seu real esposo estava perdido nas aventuras, na conquista de Tróia.
De modo que na nossa sociedade a figura de Penélope é bem admirada, amadíssima, mas eu justamente, eu não gosto da figura de Penélope, e eu gostaria de tomá-la como símbolo nesse momento, um símbolo criticável. Porque eu sou ao contrário! Eu defendo para mim e para minhas companheiras de vida, para a mulher, é a imagem de um Ulisses, não um Ulisses predatório, guerreiro, batalhador, que arruina as cidades, mas àquele que se perde no mar Egeu e vai viver aventuras extraordinárias. Cada dia é uma proposta nova. Porque eu não quero ficar em casa como Penélope.
Então, talvez esse símbolo, como você pode perceber, relacione-se com essa história. Só que eu faço a crítica ao contrário, quer dizer, a mulher da “Colheita”, desse conto , ela é um ser tão rico, tão próspero que apesar dela ser vilipendiada, dela ter sido deixada abandonada durante anos pelo marido, pelo companheiro, não é?, ele jamais perguntou a ela se ela gostaria de acompanhá-lo, ele jamais disse a ela, eu vou para um lado, eu tenho uma trilha, você segue a outra trilha. Não! Ele praticamente condenou-a a ficar confinada às quatro paredes.
Então, quando ele chega arrogante, pomposo, acreditando que dominou todos os estatutos da vida, ela praticamente nem o deixa falar, ela demonstra a alta sensibilidade dela como ser humano. Um imaginário tão poderoso, que ainda presa, ainda confinada, esse imaginário aflora, e ela inventa as coisas mais espetaculares. É uma criadora! Uma criadora de vida, de emoções, de experiências, não é?
E ela começa a falar. Ele percebe que tudo àquilo que a vida lhe ensinara, ensinara errado, à medida que a vida que ele havia buscado era uma vida que cerceava a liberdade coletiva, só beneficiava a ele, e condenava a ela, ou seja, metade da população fora silenciada, estava confinada dentro de casa. Isso você pode extrapolando compreender.
Então, ele sente que uma vida só vale ser vivida quando você se perde no coletivo, mas um coletivo vivido pelo coletivo, por todos nós, e que o imaginário seja um bem comum. Um bem social, não é verdade? E que essa mulher que ele pensou ter muito a aprender dele, ela é quem passava a ditar as normas de um mundo melhor, mais rico, mais sucessivo, e que permitiria que as histórias fossem narradas, viriam outras histórias, as histórias se sucederiam.
De modo que é essa a mensagem, quer dizer, uma das mensagens, desse conto, “ Colheita”.


Lucia- Eu gostaria de saber, por exemplo, se você tem algum momento de criação. Como acontecem seus momentos de criação.
Nélida- Olha, eu acho que de algum modo você cria diariamente, a cada instante, mesmo quando você não tem um contato físico diário com a palavra, isto é, quando você não está escrevendo.
Aqui, nós reunidas, nós estamos criando. Nós vimos um pão maravilhoso, feito em casa, que comemos ha pouco. É um ato quase eucarístico, não é verdade? Então, a partir daí, você pode imaginar de onde veio esse pão? a habilidade das mãos que o fizeram, não é verdade? Então, todas nós aqui reunidas, que aqui chegamos, cada uma trouxe a sua história, então me cabe o quê? recolher os detalhes, a emoção de cada rosto, a história de cada uma de vocês. E não esquecer. Eu não tenho o direito de esquecer. Eu preciso ser fiel à memória não é? Talvez seja minha maior fidelidade.
De modo que eu acho que a criação é diária. Você não pode obstacular a criação, você não pode obstruir os poros da tua pele. A pele, embora até vestida, com trajes, com os jeans da vida, com as sedas, não importa o que você esteja usando, a sua pele precisa estar aberta, os poros abertos, para que
a história humana passe por eles, e te impregne, e você fique fertilmente rica, e que saiba reproduzir essa vida, saiba multiplicar essa vida. De modo que criar é um ato diário, cotidiano, e rigorosamente necessário. Não há um momento determinado de criar. Há sim momento de escrever. O que é diferente.

Esther- Nélida, a Zezé Motta que deveria estar aqui hoje , lendo trechos desse seu último livro “O Calor das Coisas” por estar fortemente gripada não pode comparecer. Mas leu passagens do livro em sua própria casa e te manda um abraço sem gripe.
Nélida- Eu aceito o abraço até com gripe.
Esther- Basicamente se tem uma concepção que o escritor não lê, não fala o seu texto. Escreve apenas. A voz é de quem canta, de quem interpreta, de quem anuncia, nunca do escritor. A voz do escritor é sempre a letra impressa. Mas agora, Nélida lerá do seu oitavo livro “A Força do Destino”, página 12.


Nélida- “Álvaro hesitou em ceder-me seus bens. Ao mesmo tempo, temia perder-me. A verdade é que tinha o espanhol pretensões literárias, apenas não sabia como dispor das palavras, sincronizá-las para que formassem um conjunto que jamais vazasse água. E, só em nome desta vocação, pareceu-lhe natural participar de uma história que devia ainda realizar-se.
Sabe mesmo contar uma história, Nélida? Sua maior preocupação era que inventasse eu um espaço onde não estivesse ele incluído. Ou que o descrevesse de modo a que nem os vizinhos o identificassem, Álvaro queria um retrato vivo, pungente e, de preferência, moral. Temi prometer-lhe a glória, o espírito dos anais romanos. Quando eu apenas utilizava modesto instrumento que, afiado contra a pedra, muitas vezes me havia ferido, o meu corpo era agora um rico mapa. Prometi-lhe que dentro de um barco de modelo variando segundo o volume das águas, seria ele o principal marinheiro. Mas disse-lhe também: não deixe Leonora saber que aqui estou a seguí-los, serei uma pele de temperatura igual a de vocês. Qualquer febre da tua amada, há de incendiar-me também.
Álvaro enrubesceu. Era um jogo perigoso. Bastava acenar com a cabeça e passaria eu a surpreender sua sevilhana a fazer amor a qualquer hora do dia. A distribuir fulgurações pela carne na certeza de transcender a de Álvaro e, conseqüentemente, a minha também. A partir daquele momento, nenhum gesto da mulher, a deformá-la, ou a iluminar, mereceria meu descuido, destinava-se apenas a Álvaro. Tocando o ombro do homem eu lhe recordaria
minha presença, ali estava a exigir a minha parte. Quando Leonora fechasse os olhos, querendo indicar sofro assim do pudor, desta delicadeza de véu, e quem me levará de novo à luxúria, também eu ali estaria para provar-lhe o gosto, com uma só exclamação interrompendo a prodigiosa ascensão do seu arrebato.
Ah, Álvaro, acaso sabes o que há de significar uma partilha? Já sofreste de ciúme, puseste os dedos em chamas nas narinas para livrá-las da aflição? Nada parecia consolá-lo. Chegava-lhe a modesta glória mediante os acertos feitos com uma estranha a cobrar-lhe a amada. Uma cronista que dispensava sua licença para integrar-se ao corpo de Leonora, podendo até amá-la sempre que ele a beijasse. Percebi-lhe o sofrimento. Mas não podia socorrê-lo, propor-lhe o abandono do projeto. Cabia-lhe eleger entre a solidão com Leonora e a minha história registrando aquele amor.
Unicamente por minhas mãos ingressariam ambos na língua portuguesa, que é, como expliquei a Álvaro, um feudo forte e lírico ao mesmo tempo. Um barco que até hoje singra generoso o Atlântico, ora consolando Portugal, ora perturbando o Brasil. E porque esta língua tem vocação marítima, entende bem os impropérios do vento, mais que qualquer outra se deixa levar pelos sentimentos. Os ais e os prantos a seduzem tanto, que esta língua busca as estradas de ferro para medir de perto a intensidade das mágoas que só ganharão corpo e expressão através de seus recursos. E porque ela se orgulha do que é humano, esta língua portuguesa, de rosto e sexo ardentes, é capaz de saber, apenas pelo apito do trem, se quarta-feira é dia dos amantes usarem-na quando se querem perder para sempre. E como está em todas as partes, é privilégio seu provar a saliva de qualquer beijo, sentir-lhe a densidade do sal. Pois quanto mais salgado o beijo, mais as desesperadas palavras do seu patrimônio ganharão saída pelos poros, os olhos arregalados.
Nestas horas, como de propósito, a língua estimula os lamentos africanos, que lhe foram incorporados nos últimos quinhentos anos brasileiros. Com eles, ela ganhou força e ardência. Ficou uma língua morena. Talvez por isso se comova com tanta facilidade, e solidarize-se muito mais com um corpo em frangalhos do que com quem sai altivo do embate amoroso. Tornou-se a língua portuguesa plangente, de índole excessiva, e deseja que usem vinte de seus vocábulos, quando apenas três talvez expressem parte dos seus sentimento.
Daí esta língua precisar de que seus amantes se excedam, imaginem o coração incapaz de novo afeto.
É nestas horas que a língua, sob tão grave ameaça, ganha dimensões impensadas. Usa da pena de Camões, Cecília, Machado, Clarice, só para não perecer. Ela quer ser usada até mesmo pelos sentimentos menos nobres. Não lhe falem jamais de poupança, nem pensem conferir-lhe a sobriedade que não seria outra coisa que prendê-la com cordas às camas secas de um quarto de hotel com luz neon, para que não lhe escutem os lamentos.
Esta língua portuguesa, Álvaro, quer-se fazer ouvir para sempre. De cada palavra demanda uso e volúpias novas. Sem se importar com o pedaço do corpo de que abdicamos para preservá-la. Ah, Leonora, por minhas mãos, e por elas apenas, esta língua recolherá atos, palavras, ações, para devolvê-los refletidos e massacrados. Por minhas mãos, ainda, Álvaro, eu os introduzirei definitivamente a uma língua que registra a vida de modo a que se cancele a inocência para sempre.”

Lucia- Nélida como foi seu começo como escritora?
Nélida- Foi uma aprendizagem longa, sobretudo porque eu estava protegida por essa convicção secreta de que eu ia ser escritora, de que eu teria meus livros publicados. Um dos maiores choques da minha vida sabe qual foi?
Adolescente, l4, l5 anos, eu adorava ir à cartomante, que eu acho uma maravilha a cartomante, o outro lado, o mistério o enigma me fascinam. Eu não vejo o mundo suficientemente explicado, como tal, eu sou vulnerável, eu sou disponível. De modo que eu fui a uma cartomante e, lembro-me muito bem, de ter-lhe perguntado, eu vou ser escritora? vou conseguir publicar algum livro?, olha só! uma menina de l4 anos não faz esse tipo de pergunta... Pergunta eu vou me casar, vou viajar, essas banalidades do cotidiano, essas banalidades insufladas pelo sistema não é?
Pois bem, aí ela disse assim; ah... a menina, ou você jamais publicará um livro sequer. Eu fiquei tão arrasada! Até hoje, quando sai um livro novo eu digo assim: viu? cartomante, de não sei há quantos anos atrás, você errou, olha! eu já estou no nono ! entende? quer dizer, eu busquei sempre a literatura. De certo modo eu sou um cão adestrado, eu só não sou obediente e servil porque eu sou rebelde, porque a vida me ensinou, entendeu? que há que ir contra as normas, contra as sanções, há que subverter todas as realidades oficiais para arrancar a vida da vida oficial. Mas realmente eu me preparei desde garota para escrever, para ir aos lugares, não sei, até mesmo para falar para o público, para assumir a responsabilidade do ofício que é uma grande responsabilidade social. Eu não posso viver como escritora trancada no meu quarto apenas, na minha sala, no meu modesto lar.
Lar para mim é do lado de fora. Lar para mim é o universo, é a linguagem, a terra. Essa que é minha batalha, minha cama, meu sossego. É a inquietação do lado de fora! Ficar em casa é maravilhoso, eu adoro ficar em casa, eu adoro estar comigo ouvindo música, lendo , escrevendo, mas são momentos transitórios. Isso não me basta.
Eu preciso me deixar subornar pela vida, a vida precisa me subornar diariamente, no grande sentido do grande suborno. Ir pra fora. Me lançar a essas correntes marítimas, a essas monções atlânticas que estão na vida não é? Aí eu vou mesmo, eu sou fiel ao meu signo, sou uma taurina, me jogo assim de cabeça e (risadas gerais) ... Sou taurina, do segundo decanato, e realmente muito taurina, penso eu. Pelo menos eu acredito ser taurina e, segundo eu sei, o meu signo ascendente é Leão. Leão e Touro!

Esther- Lucia, estou morrendo de vontade que você pergunte à Nélida porque ela não faz literatura infantil?
Nélida- Para criança?
Lucia- É.. por que você não escreve para criança?
Nélida- Não sei, talvez não tenha chegado a minha hora. Mas você sabe que me emocionaria profundamente pensar numa criança indefesa, numa criança cujo imaginário é desenfreado, é livre ainda, cujos condicionamentos culturais são menores que os nossos, que essa criança pudesse ler algum texto que se fizesse pra ela. Eu acho que seria um momento de grande emoção para mim, mas ainda não aconteceu. Eu não sei se a minha linguagem serviria a uma criança. Mas é alguma coisa que talvez venha à minha vida um dia, eu não sei. Mas eu não escrevi até hoje.

Em 1996, muitos anos após esta conversa, precisamente, 15 anos depois, a escritora Nélida Piñon lançou um título de literatura infantil, pela editora Ática, “A roda do vento”.

Lucia- Agora, você sente uma diferença muito grande, assim, quase como se vê agora , entre literatura infantil e literatura adulta em termos de conteúdo? Eu não digo de linguagem. A linguagem infantil, ela é apropriada para a idade da criança, mas o conteúdo social, o conteúdo humano, o conteúdo afetivo, você sente essa divisão, tão grande quanto eu tenho visto?
Nélida- Não. Não sinto não. Acho que você colocou muito bem a questão e talvez até me ajude a responde-la, Lúcia. A linguagem é diferente, terá uma intensidade distinta. Agora, o conteúdo é o mesmo, porque a criança é um homem, a criança é o velho, o velho é a criança. Então vamos usar uma palavra bem antiga: alma! A alma é a mesma, não é verdade? Então os problemas humanos aí se apresentam segundo uma escala, de tamanho talvez, mas eu acho que o conteúdo são irmãos. É o mesmo conteúdo. Eu não vejo diferença.
Lucia- Porque eu tenho notado que as pessoas têm uma certa estranheza quando a gente diz que é escritora infantil. Então eu me lembro que uma vez eu estava numa reunião, e fulano me apresentou como escritora, numa época em que eu estava publicando o primeiro livro. Ah! você é escritora? disse a pessoa. Eu respondi: sou sim, de livros infantis, a pessoa disse: infantil? e saiu.
Nélida- Mas ô Lucia é um problema de preconceito.
Lúcia- Mas eu senti isso em mais gente...
Nélida- Ah é! Mas você sabe que o universo cultural nosso e não é só no Brasil, é um universo assim muito cheio de preconceitos, não é verdade? De modo que, daqui a que nos dispamos desse preconceitos todos, é uma batalha diária. Eu acho inclusive, por exemplo, a classificação de escritor infantil já é inibitória. A classificação, não é verdade? É uma escritora! Agora pode-se até dizer seu texto destina-se a que universo, a que público, aí mais especificamente ao universo, ao mundo infantil, não é verdade?...

E a conversa terminou assim. Não lembro se por falta de fita, ou se elas desapareceram com as mil mudanças de casa que venho fazendo. Mas muita coisa foi falada durante algumas horas da noite, lembro-me bem. Em torno de uma mesa, se não me engano redonda, que ficava num canto do apartamento. Passamos pela cozinha, também se não me engano, onde ajudamos a preparar um lanche. E lembro-me que , por fim, estava sentada no chão, recostada no sofá, ouvindo a conversa das duas escritoras.
No entanto, o programa “Fala Brasil!”, que estava sendo feito naquela ocasião, terminava com a leitura do texto que Nélida Piñon havia feito.



OS SOBREVIVENTES


De volta a l978, precisamente no mês de março, - no ano anterior fora lançado o livro “A Força do Destino”- estávamos ainda na casa da escritora Nélida Piñon, eu e Anibal, e ela nos dizia:
Nélida- Recebi um convite, bastante importante, que eu realmente terminei aceitando que foi o de representar o Brasil no Congresso da Suécia, do Pen- Club Internacional da Suécia, e vai haver um Congresso de Literatura Latino-Americana, por incrível que pareça, na Dinamarca.
O primeiro tem um caráter mais teórico. É uma definição mais ampla da atitude do escritor em face do mundo, o mito do escritor, os disfarces do escritor, o disguising, vamos dizer as fantasias, mito em confronto com realidade, não é verdade? o problema de dar nome às coisas, isso já estou colocando por minha parte, enfim, é toda a sucessão em torno do mito, não é? Associação muito interessante.
E o segundo vai ter um caráter mais polêmico, porque a indagação, de certo modo, embora o título seja afirmativo, em que medida as condições da América Latina permitem que o escritor se realize em termos de sua obra, em face da sua produção, em relação à seu texto? Não é somente qual é o compromisso social do escritor, eu acho mais importante que isso, que eu acho que o escritor tem um compromisso social basicamente como definição de escritura para mim, não é? eu acho que escritura é uma opção moral de texto , quer dizer , cada vez que você escolhe uma palavra, você tem uma atitude ética em face de teu texto. Isto é no sentido em que medida você, ao estar inserida dentro de um quadro constituído, e dentro de um quadro de Estado, você pode produzir o seu texto? Não é só publicar o seu texto. Em que medida, a sua vida interior, a sua criatividade é afetada pelo aparelho estatal. Inclusive, eles colocam as perguntas deles do seguinte modo: de um modo geral muitas das obras dessa América Latina foram criadas no exílio. Essa é uma das vertentes da indagação.
Eu ainda não pude sequer pensar muito sobre esses dois congressos, que vão exigir muito de mim, porque eu vou ter companheiros como diriam, pesados, fortes, realmente com alta estrutura mental. A Itália vai mandar Ítalo Calvino, Graan Grene em princípio estava confirmada a ida do Michel Foucault; Mario Vargas Lhosa, Otávio Paz, Gabriel Garcia Marques, vários escritores, ah! Günter Grass , da Alemanha... De modo que são companheiros, não somente muito brilhantes e admiráveis, como com alta experiência internacional não e?, assim de congresso. Homens que manejam as entrelinhas desses encontros literários com grande facilidade, não é?
E além do mais, de um modo geral, quase todos eles têm como segunda língua o inglês, o francês.
Enfim, eu aceitei a batalha, não é? o desafio, eu de certo modo, não digo, é meio difícil de dizer, se a gente cresce ou não com o desafio, mas eu me encontro muito com o desafio, sabe?
Como se eu descobrisse um rosto que eu própria não me vira ainda, a não ser através de uma proposta nova. De um medo novo, até da possibilidade de um fracasso novo.
E como eu não tenho muito medo de fracassar, embora eu me empenhe para não ter grandes fracassos, eu acho que inclusive a condição do escritor latino-americano e, eu diria sobretudo, o escritor brasileiro, tem uma condição muito difícil, isso nos deu uma experiência de vida enorme, não é?
Se nos faltam oportunidades, por outro lado, àqueles que sobreviveram, àqueles rebeldes, como eu digo, rebeldes sobreviventes, não é? esses que não aceitaram essa contínua convocação de desistir, que nos é proposta diariamente, esses estão muito aparelhados para ir assim à Suécia, à Ásia, à Birmânia, enfim, e mostrar que o escritor brasileiro, contrário a algumas afirmativas, de que muitas das obras deste continente foram escritas no exílio, nós escrevemos as nossas obras aqui, no Brasil, com as nossas dificuldades.

Esther- Isso que você diz Nélida, me lembra uma personagem do seu último livro, “A Força do Destino”: a Nélida cronista pede que não façam orações por ela porque a limitariam...

Nélida- Você percebeu isso? Isso é meio revolucionário hem! porque, noutro dia até, a escritora Raquel Jardim, que também estava lendo o livro, ela me falou muito impressionada com essa frase, ela disse; “isso aqui é muito revolucionário! porque você pede que não interceptem os teus passos, nem intercedam assim por você. Você tem que realmente ter uma total liberdade para eleger o seu destino...”
De certo modo isso você pegou muito bem, e vem de encontro ao que eu dizia, e se eu não sou sempre a cronista Nélida, muitas vezes eu assumo a máscara, uma das máscaras da cronista Nélida, como ela é ironicamente chamada no livro não é?

Esther- O artista, não é?
Nélida- É o artista. Aliás a epígrafe é uma definição, e além do mais a insinuação de que o texto foi liberado pela Meza do Paço, não é? Já então os textos que pretendiam criar raízes , e que vinham para convocar a realidade, que no dicionário é uma das expressões mais abrangentes disso que estou dizendo, tinham que passar pela censura, não é? incomodavam. Incomodavam mesmo.
Esther – Esse seu livro “A Força do Destino”é uma guinada de l80 graus com relação aos anteriores.
Nélida- Como assim, eu então tenho que me perguntar, como assim?
Esther- Você era uma Nélida que não se permitia assim certas liberdades no trato da linguagem, uma liberdade mais popular no texto, e sinto esta liberdade nesse livro. Além do mais te sinto muito mais solta do que nos textos anteriores. Além do mais te sinto sábia.
Nélida- Bonito. Isso é bonito. A gente não escuta isso sempre não.
Esther- Muito próxima da gente, do ser humano, não querendo procurá-lo por vias transversas, mas por ser parte dele, tocando-o diretamente.
Nélida- Você está sentido assim uma aproximação maior, não é?
Esther- É. E o que você sente?
Nélida- Olha, eu acho que de certo modo eu tenho um destino de coerência em relação à minha trajetória individual.
Por exemplo eu vejo, por incrível que pareça, a “Força do Destino” como uma prolongamento do próprio “Guia- Mapa”, que era um texto experimental, um texto feito por uma jovem, muito jovem, que sentiu que devia transgredir a linguagem para não se oficializar, você entende? que havia de transgredir a linguagem para não se oficializar. Porque é uma questão muito fascinante.
Primeiro eu acho que toda linguagem manifesta um estado real, é uma das leituras da realidade, Toda linguagem.
Então, quanto mais a linguagem está decifrada, com menos enigmas, e com menos leituras, e com menos níveis de realidade , ela é mais uma realidade convencionada, uma linguagem mais controlada pelo aparelho estatal. Expressando muito mais a linguagem oficial. Então é muito delicado acreditar que haja uma linguagem para o povo e uma
linguagem para a elite. Há sim, talvez, o que seria o ideal, era fundir o sentimento desses dois extremos, através de uma linguagem que se codificou a ponto de se enriquecer, mas que é decifrada, a ponto de atingir uma simplicidade de leitura, mas com todas as referências incluídas, com todos os significantes.
Quer dizer, é um despojamento aparente. Eu não sei o que você acha da “Força do Destino”, mas eu sei que é um texto de certo modo arqueológico, com muitas camadas, você vai levantando muitas peles. Ele é altamente referencial.

Esther- Arqueológico no sentido de seu próprio trabalho.
Nélida- Do meu próprio trabalho. Não de antigüidade. No sentido daquela tentativa, daquele grande arqueólogo alemão, que preparou-se ao longo de uma vida para descobrir a cidade de Agamenon, para descobrir até Tróia, e descobriu que haviam outras cidades em baixo daquela. Igualmente ricas, com uma biografia, com uma memória, e com traços residuais visíveis . No sentido de recolher as coisas, levantar aquelas camadas superpostas. Existem muitas realidades, existem muitas referências. A fragmentação é absolutamente coerente, a fragmentação são vários cacos coletados, vários rostos coletados, várias linguagens coletadas. E quando eu digo linguagem, não é só a linguagem de agora, é a linguagem que nos precedeu. A linguagem que chega a nós através de nexos culturais contínuos, que não pode haver interrupção. Porque nós somos a conseqüência de nós mesmos, à medida em que nós somos uma conseqüência do nosso passado. Eu não creio em rupturas violentas.
Então, tudo isso, para lhes dizer, depois você vai organizar, que então a “Força do Destino” está aqui à minha direita, casualmente à minha direita, e “Guia- Mapa” à minha esquerda, mas você pega o primeiro livro meu, o segundo, o terceiro, até o oitavo, esse é o oitavo publicado, e você vê que é uma luta com a linguagem, uma luta com a tentativa, quer dizer é uma luta para absorver alguma coisa no homem que não nos é dado ver, que não nos deixam ver.
Então você vê que até as nossas mitologias oficiais já estão catalogadas, elas têm nomes! Eu acho muito pouco para o homem isso. Porque até a nossa afetividade tem nome, é rotulada, o nosso sexo é rotulado, a nossa cama é rotulada, então eu acho que é parte do dever do artista quebrar a rigidez dessas definições, criar ambigüidades, indefinições, para justamente facilitar essa imensa liberdade de criação do artista.

Esther- Este seu último livro me remeteu ao “Fundador”.
Nélida- Não. Não. Eu não me vejo, eu vejo sim que esse livro está conectado a todos os meus textos anteriores. Mas que eu sou uma mulher de rupturas, mas não uma ruptura cultural, como te dizia, ruptura no sentido assim, que eu acrescento novos elementos à minha biografia, eu não permito que minha biografia pessoal e de artista, ou seja, como ser coletivo, se estratifique! Uma biografia que não para no tempo.
Como eu não paro no tempo, eu acho que não estou parando no tempo, pelo menos acredito nisso, os meus textos têm essa força de coerência, um impulsionando o outro. Esse não teria existido sem “Tebas do meu Coração”.
Eu acho que “Tebas”, realmente foi o texto mais vital, mais criativo que eu já produzi até hoje. Não quer dizer que este eu não considere também, mas “Tebas” é um livro de mil comportas e de mil portas, que eu sei que ainda não foi decifrado, entende? Pode ser agora através da “Força do Destino” que tem, como você disse uma aproximação mais popular, que tenha, aparentemente! ,mas sem concessões.
Mas enfim , eu acho que esse livro seria, de certo modo, este livro seria o texto traduzido de “Tebas”. Claro com outras propostas, com outras vigências.

Esther- Eu o aproximo mais de “O Fundador”!
Nélida-. Eu acho isso muito bom! Eu acho maravilhoso! Porque eu acredito muito na co-autoria do leitor. Que tem de ter esta liberdade! Se não realmente você é onisciente, é onipotente, em relação a seu texto. Seu texto é eventualmente seu, uma vez que você lida com o material que você resgatou da rua, da sarjeta, do retábulo, então..., e você devolve, você devolve dentro da tua visão estética, não é? da visão que você tem do mundo. Como é que você enxerga o mundo? Como é que o mundo se deixou enxergar por você?. Eu acho que muito mais você opera no sentido visual, no sentido de dar às palavras um significado que elas podem ter, e que não vivem no registro comum, mais rico é seu texto. Não é verdade? então eu acho muito importante, uma vez que eu utilizo o material que eu resgato, eu o devolvo no texto, então a co-autoria é inevitável e fatal.
Esther- Aí entra um problema de ótica, não é Nélida, e, como você colocou, seu texto resulta da possibilidade com que o mundo se deixa ver. Há também um problema de existência ou não existência, de realidade ou não realidade. Dado isto, como você se conceitua, como você se vê e como você se existe?
Nélida- Mas eu me vejo é assim uma coisa muito vasta, não é Esther? Aí nós correremos o risco de entrar num debate, num monólogo de sei lá algumas horas, eu me vejo como mulher, como pessoa, como artista, como ser...
Esther- Mais!
Nélida- Mais, o quê?
Esther- Mais!
Nélida- Seria bom que você definisse esse mais.
Esther- Isso basta, estas definições te bastam? basta a você ter consciência de ser um ser- humano?
Nélida- Se me basta essa consciência?
Esther- Ou você exige um pouco mais, ou você busca um pouco mais?
Nélida- Não...
Esther- Isto consegue te definir?
Nélida- Veja só, o simples fato de você dizer se te basta ser ser-humano, você está introduzindo um preconceito. Ser um ser humano o que é? Seria um ser total?
Esther- Não sei. Você sabe?
Nélida- Não. Deveria ser. Deveria ser! Nós não somos porque estamos muito, nós somos limitados por várias circunstâncias sociais, por vários códigos éticos, por várias tonalidades morais, mas o ser humano em realidade, é tudo aquilo que ele é, e quando eu digo tudo aquilo que ele é, aquilo que ele é historicamente, no momento histórico!
Eu estou sendo, nós aqui, estamos sendo alguma coisa que há cem anos atrás três pessoas como nós, idênticas, não poderiam ser como nós. Porque as condições históricas, além do destino individual que presidia cada um deles, os transfigurava e modificava como ser humano. Então, inclusive, ser o que nós estamos sendo, vai depender muito da língua que nós falamos, da roupa que nós vestimos, da sala em que nós estamos, dos colégios que nós freqüentamos, do governo em que nós vivemos, do ano em que nós estamos, você entende?
Veja bem, um brasileiro de 78 no Rio de Janeiro não é igual a uma nova-iorquino de 78, em Nova York. Como essas duas pessoas já em si tão diferentes, como destinos coletivos, nada têm a ver com um indiano, cuja mitologia é totalmente, é basicamente distinta da nossa ,como pelo fato de você pertencer a um país de 900 milhões ou um bilhão de pessoas, com problemas quase, mas quase que rigorosamente insolúveis, ainda não tem solução, altera o ponto de vista desse indiano, mas ele é um ser humano em toda sua totalidade, porque mesmo o exercício crítico que nós pomos em relação à Índia, que nós não compreendemos, por exemplo, que eles não abatam uma vaca para o alimento, mas a mitologia de um indiano faz com que ele veja essa norma, como alguma coisa ativa dentro do seu cotidiano, e isto o modela!, ele é um ser total naquela cultura, e será um ser menos total em relação ao passado ou talvez ao futuro, porque nós não temos distanciamento para julgar.

Esther- Agora, neste momento, em relação à nossa cultura , nós podemos estar sendo seres totais?
Nélida- Querida, nós estamos sempre defasados, isso é básico, nós estamos sempre, eu digo como seres, nós estamos sempre muito defasados em relação a nós próprios, em relação ao porvenir, em relação ao nosso corpo, porque nós já estamos, você e eu nesse momento, estamos com cinco minutos menos de vida, você já pensou nisso?
Esther- Mas com talvez mais experiência...
Nélida- Experiência que talvez não possamos utilizar em tempo útil. E que, talvez, essa experiência não seja útil senão a nós próprios! E que nós estejamos num país para o qual a nossa experiência é absolutamente dispensável, assim como nosso textos!
Esther, Mas é um povo que faz o país...
Nélida- Mas você sabe perfeitamente que se há um povo que faz um país, um país quando eu digo é um governo, conforma um povo por muito tempo.
Esther- Então, aí é que entra um ser humano total, que não permite que lhe castrem.
Nélida- Então, como você está colocando a coisa, você já está falando num ser total de uma sociedade aperfeiçoadíssima , com instrumentos próprios de expressão, que produziu esse homem maravilhoso.
Uma sociedade em que hão classe, não há miséria, não há repressão policial, não há medo , porque nós somos muito, muito do nosso bom comportamento, da nossa... do quanto nós nos inserimos no contexto social, vai muito por conta do medo que é exercido diariamente sobre nós.
Esther- Seríamos um produto do medo?
Nélida- Nós consolidamos o medo.
Esther- Você tem medo, Nélida?
Nélida- Eu tenho medo no meu nível, claro! Você acha que eu quero ser torturada? Eu tenho condições de ser torturada? Você quer ser torturada?
Esther- Morro de medo!
Nélida- Pois é, você já pensou? só de pensar que você não tem condições de prever a tua conduta numa tortura, em relação à tortura, isso te fragiliza tremendamente, e te deixa numa situação inferior àquele que já foi torturado. Passou pela grande prova. Nós não passamos por essa prova. Então nós nos devemos isso. Não queremos, porque nos repugna um sistema que tortura, mas em termos éticos, a nossa ética não foi testada suficientemente em relação à tortura. Você já pensou que nós temos companheiros de geração, de tempo, que nos precederam nessa experiência? Eles têm alguma coisa a relatar, e eles estão imersos no silêncio, porque não podem nos relatar essa experiência terrível.
Então, todos nós temos medo! Muita coisa eu deixo de fazer, talvez, pelo medo. Agora, eu de vez em quando tenho meus momentinhos de audácia, de coragem. Eu tenho procurado ter. Eu sou uma mulher que enfrento certas situações... mas em que medida eu já enfrentei o suficiente? Eu e todos nós? Em que medida nós fomos levados pelo bom senso, o chamado bom senso , que é... que podemos contestar tanto na sua essência, não é? Que é tão repugnante também o bom senso!
Então eu acho, pra completar aquilo que você dizia, de um ser total, o ser total realmente está para se fazer, está realmente por se fazer! Nós nos conhecemos muito pouco...E acho que nós vivemos numa sociedade que não estimula o crescimento ético, que não reforça o mundo ético.

Esther- E porque Nélida?
Nélida- São razões tão antigas! Há componentes históricos, alguns suficientemente conhecidos, outros ainda por estudar, o fato é que o homem é uma presa do egoísmo, da prepotência, da desconfiança, do ciúme, acho linda a palavra jalosia, que vem daquelas janelas, não é, que os árabes faziam para prender as mulheres, então você vê, com tantos elementos dificultando nosso acesso a um mundo ético melhor, realmente é muito difícil definir o homem.
Depois, o ser humano é muito contraditório, muito ambíguo , não é? ele é profundamente ambíguo. Ele próprio não consegue se ver. O simples fato de que as suas melhores expressões, as suas mais profundas contorções fisionômicas e de corpo , ele destina ao outro e não a si próprio, quer dizer ele não se vê no espelho, ele não tem um espelho diante dele! o outro é sempre o teu espelho, mesmo que você esteja imersa no espelhismo, não é, na auto referência! Eu, por exemplo, não sei como está o meu rosto diante de vocês, e vocês desconhecem o próprio rosto, que eu estou captando. Eu que desenhe o rosto de vocês, e vocês desenhem o meu rosto! Não é?
O que de certo modo é fascinante! nós praticamente existimos, nós dependemos do aval alheio pra existir. Daí, viver em comunidade, ser uma criatura coletiva é ser, cada vez mais, uma criatura social, com preocupações sociais, com preocupações ideológicas, eu acho. Isso é uma coisa que a gente pode levantar. Porque nós estamos tão ligados uns nos outros, tão atados, que o mínimo que a gente pode desejar é criar um bem estar pra todos, que todos tenham as mesmas oportunidades.


Após uma pausa, para todos nós, Nélida confessa “hoje estava muito sol, eu tinha tomado sol, sabe? Hoje eu tinha resolvido não trabalhar muito, embora necessitasse.”

E estávamos nós lá, obrigando-a a trabalhar.
Não havia, nessa ocasião o buraco na camada de ozônio, pelo menos, não se falava publicamente sobre isso, o efeito estufa ainda era uma coisa distante, portanto podíamos todos, exageradamente, desfrutar do sol, sentir a pele arder ao contato com a roupa, e, para refrescar a ardência tomar um banho espumante de banheira e, depois, passar Caladril no corpo. Sem consciência culpada, sem temores quanto ao câncer de pele, sem temores com relação a um futuro climático sombrio, que hoje é presente.
Quando Nélida falou da tortura, naquela ocasião, eu ainda não estava pronta para contar que tinha sido presa sim, como falei anteriormente, e tinha sido torturada sim. Foram necessários alguns anos de análise para que eu pudesse me confessar isto, e conversar sobre o assunto com outras pessoas.
Era impressionante o que os torturadores e o governo faziam com os torturados! Nos obrigavam a acreditar que por sermos torturados éramos os sujos, os que não mereciam participar da sociedade. Os meliantes!
E naquele momento, em que se falou de tortura, eu me peguei envergonhada por ter sido presa e torturada, durante uma reportagem. Felizmente não denunciei ninguém , pois não fazia parte de nenhum movimento . Apenas possuía amigos no MR8, e, de vez em quando, ajudava de alguma maneira, para o treinamento que faziam na floresta da Tijuca, e ia com alguns aos ensaios das escolas de samba, lá no Mourisco. Mas tinha a consciência pesada por eles terem apreendido todo meu material de trabalho e minha bolsa, onde estava minha agenda, com nome e endereço de amigos, conhecidos, pessoas que havia entrevistado e outras que entrevistaria. Mas, felizmente, ninguém foi incomodado.
O processo sobre o meu caso correu à revelia em Juiz de Fora, Minas Gerais. A razão não sei? Mas foi o que me contaram . Por fim, fui dada como inocente útil. E, por incrível que pareça, esta definição me envergonhou mais ainda!
Tenho uma lembrança bonita para contar e agradecer.
Quando saí do Doi-Codi de São Paulo, expulsa da cidade, tendo um prazo para deixá-la até ás 18 horas, mas sem qualquer, dinheiro ou talão de cheque , pois tudo me foi tirado, fotógrafos e repórteres aguardavam na porta de saída , ou de chegada. Uma japonesa, melhor dizendo, nisei, se aproximou para a fotografia. Eu lhe pedi: fica a seu critério me fotografar ou não, e me tornar mais conhecida dos órgãos de segurança.
Ela abaixou a máquina fotográfica e todos, sem exceção assim procederam. Os jornais que noticiavam que eu estava desaparecida, no dia seguinte, informaram apenas que eu já havia sido solta. E, por sorte, meu nome estava grafado errado.
E quem me ajudou a retornar ao Rio, por incrível que pareça, foi o Rotary Club de São Paulo, cujas mulheres estavam em vigília até que o último de nós, que fôramos presos na mesma ocasião, fossemos soltos.
Andando até lá, recebi banho, comida, roupas limpas e a passagem para o Rio. Foi lindo. Foi lindo demais. Os seres humanos estavam ali de prontidão!



OS SUCESSORES



Esther- Como você vê esta nova leva de escritores?
Nélida- Eu vejo esta nova leva de escritores como eu vejo àqueles...
Esther- Os chamados escritores novos, os marginais...?
NélidaMarginais, eu não considero marginais, porque eu acho que todo escritor é marginal. Eu acho que não é uma geração marginal, na medida que todos nós somos marginais, todos nós padecemos de grandes dificuldades, na produção... para produzir, e sobretudo porque o nosso texto é em si marginal. É um texto que destoa, em desarmonia com o meio social. De modo que com isso, até alguns na Academia Brasileira de Letras, são marginais. Você entende? O Sr.. João Cabral é um marginal, nesse conceito de marginalidade. Para mim, o conceito de marginalidade é levar ao paroxismo a isenção artística. Quando eu digo a isenção artística, vamos dizer, é buscar no seu texto eliminar as convenções sociais, eliminar a pressão do sistema, a pressão cultural, tentar cancelar a cultura oficial. Então, isso é marginal. Logo, todos nós somos.
Mas, respondendo à sua pergunta, eu vejo com enorme alegria essa gente jovem aparecendo, como também vejo com grande alegria àqueles que romperam a barreira, os mais velhos, que ainda escrevem, que provaram que são sobreviventes excepcionais, porque, infelizmente, muitos destes jovens , daqui há vinte anos, não estejam de pé!
Então eu tenho também que comemorar com igual alegria , àqueles que escrevem há trinta anos e continuam escrevendo e continuam fiéis ao texto.
E concluindo também, dando boa vindas a esses mais jovens ,é maravilhoso para nós sabermos, sentirmos, que o bastão, a entrega do bastão continua, os sucessores. Porque quanto mais sucessores tenhamos, mais estaremos sentindo que o nosso trabalho não é em vão! Que o texto nos precede e vem depois. É muito mais importante que nós! Escrever é vital. Escrever não é de uma faixa etária, não é de um sistema, não é de um momento histórico. Escrever é realmente estar ligado. O ato de escrever está ligado ao destino humano. Está ligado, vamos dizer, ao ato de provar que o humano existe, ao ato de ser. É permitir, vamos dizer, é a aproximação dos conflitos humanos.

Esther- Vamos falar agora do seu segundo livro , “Madeira feita Cruz”.
Nélida- “Madeira feita Cruz”foi publicado em 63. Eu escrevi, não depois de “Guia- Mapa”, porque “Guia- Mapa” eu escrevi antes da publicação em 61, não é? mas eu escrevi... engraçado, eu me sinto muito distante do “Madeira...”, nunca mais revi, porque o “Guia-Mapa” eu até reli alguns pedaços, algum tempo atrás, tive assim uma certa curiosidade, enfim, “Madeira”... eu me sinto muito mais distante... mas não é um texto renegado, de modo algum, acho que é um texto assim indispensável à minha biografia, minha história, eu sinto-me distante do “Madeira”... eu não tenho muito a dizer, eu jogo com muitos símbolos também, no “Madeira”, dentro da linha do “Guia- Mapa”...
Esther- Então segue-se “Tempo das Frutas”.
Nélida- É. Que é uma coletânea de contos, saiu em 66...
Esther- Você se detêm muito em contos, Nélida? Você tem contos inéditos a publicar?
Nélida- Tenho. Um livro pronto. Tenho já um livro pronto chamado “O Calor das Coisas”. Agora, eu gosto muito do conto, mas onde eu me sinto mais confortável, o que mais me atrai é o romance. Pela complexidade da sua proposta... é um espaço imenso diante de você, a preencher.
Esther- E chegamos ao “Fundador”.
Nélida- É um romance simétrico, organizado.
Esther- Agora vamos àquela perguntinha bem comum. Você anota, faz desenhos, sobre o livro que está criando?
Nélida- No “Fundador” fiz anotações sim, fiz anotações, fiz uns diagramas, eu tinha uma ordem mais ou menos que seguir, tanto que o “Fundador’ é em torno de três grandes personagens, que de certo modo marcam três temas. E há um quarto personagem que é o elemento temporal. É o que faz a conexão do tempo. É o fabricador do tempo. Pune o tempo e explica o tempo, que é o cartógrafo. Que é o homem que decifra a terra ,e decifra tanto, que se dá conta, isso é de certo modo, é muito meta linguagem esse personagem, porque esse cartógrafo ele se dá conta de que, do tanto que ele sabe da cartografia, isso é insuficiente para decifrar a terra, você precisa inventar, para se aproximar da terra.
Então ele se tranca numa torre, não é, e dali a única coisa que ele se permite é olhar o céu. Ele não vê mais a terra. E a partir dali ele inventa todas as formas cartográficas assim, ele dá pedaços de terra, ele desenha até a futura América! Porque é o único modo de você, mais ou menos, aproximar-se da verdade da terra, da realidade da terra, da realidade até física da terra. Isso mostra bem a complexidade do artista. De certo modo, ele é um pouco, aquilo que eu venho a fazer com mais veemência, não sei, eu acho de um modo mais rico, com alguns personagens meus do “Tebas”. Sempre alguém representando o artista, o papel do escritor, o papel do artista na sociedade, não é?
Àquele que desenforma as coisas, vaza as coisas, àquele que planta problemas, àquele que, enfim, que mostra o claro e o escuro, a sombra e o sol, não é, a diversidade, as variações e, mas enfim, “O Fundador” é uma coisa muito simétrica, muito trabalhada... “O Fundador” foi trabalhadíssimo.
Bom, estes três tempos, estes três personagens vivem em épocas distintas e eu não fiz cada um, aliás basta ler o texto para perceber, por partes separadas. Eu fui fazendo ao mesmo tempo todos eles. Então isso é muito difícil em termos técnicos, porque tanto quanto em “Tebas” eu dependia muito da memória para não errar. Às vezes num romance, com exceção de um ou outro, eu jogo muito com o tempo, então eu dependo muito da memória para não criar problemas internos no texto que eu terei que depois revisar, e talvez nunca descobrir o defeito. Qual é o elemento gerador de equívocos!

Esther- E “Casa da Paixão”?
Nélida- E no “Fundador” há também elementos muito contemporâneos, inclusive tem um personagem político! O Camilo Torres. o pai do Camilo Torres é personagem no livro “O Fundador”.
Esther- Você citou uma coisa muito importante no “Fundador” que é o jogo de luz e sombra.
Nélida- Você vê , por exemplo, que há duas monjas, há personagens que não estão definidos, outros que estão muito definidos, entende?
Esther- Há uma fuga, que considero cinematográfica, e, em determinados momentos, não sei dizer se foi uma fuga, uma despedida, uma imposição de partida, e realmente, neste momento há muito jogo de luz e sombra. Em seguida com a “Casa da Paixão” você joga com muita luz...
Nélida- É . E é um texto dionisíaco, não é? de certo modo “Fundador” é muito apolínio. Apesar de certos traços assim, dionisíacos, mas o “Fundador”...
Eu acho que “ A Casa da Paixão” tem uma preocupação pré-socrática, , os quatro elementos, não é? Todo àquele aspecto protéico das mil formas, não é? Todo mundo assumindo mil formas, é indefinido num certo aspecto, indefinidíssimo até... Tem uma grande concreção! Sobretudo naquela velha não é? naquela velha Antonia, você sente todas umas divindades atrás dela, uma mulher que lida com ervas, quer dizer, e você sente, por exemplo, que eu utilizo só elementos, em matéria de imagem, ligados com os quatro elementos da terra, não é? e são quatro personagens.
A figura do pai, a Martha, que no meu texto é o contrário da Martha ordeira da Bíblia, a Martha minha é de uma plenitude sensual, é toda aberta, tem o sexo aberto, esponjoso, ela é porosa, um sexo poroso, em busca do sol, dos raios, da fulminação física, não é? ela busca a fulminação física não é? Tanto que tem àquelas cenas eróticas no final, muito fortes, não é? É um texto muito erótico a “Casa da Paixão”. Realmente. É linguagem erótica. Inclusive até o tempo, é linguagem muito acelerada, não é? até que afinal, naquela última cena, do grande encontro amoroso, a linguagem atinge uma velocidade bem maior.
“A Casa da Paixão”criou um texto muito aberto, foi um texto que eu fiz assim, de certo modo, não demorando demais na sua confecção. Não demorei demais. Não me tomou tanto tempo “A Casa da Paixão”.
Depois da “Casa da Paixão” eu apresentei “Sala de Armas” que são uns contos, que de certo modo, eu não sei, com exceção de um, talvez, são todos contos de transgressão. Além de alguns que são, mesmo àqueles de meta linguagem, que é uma linha, mas mesmo assim é feminista, que é o contrário da medalha, é o primeiro, “Ave do Paraíso”. O título é de uma ironia enorme, não é? Mas enfim, para um leitor mais inadvertido, ele pode pensar que àquele não .
Mas é todo um texto em defesa do outro lado, do que há atrás do comportamento humano. Tanto no sentido da linguagem, como no sentido, por exemplo, há um ponto em defesa do artista que é a fronteira natural, o ponto vai em torno de Bocarosa, que é de meta-linguagem, não é? meta-linguístico, porque é todo o trabalho do artista, o problema da linguagem, como é que é... Tanto você vê que há uma proposta de se buscar a primeira palavra emitida pelo homem, quase ao sair do paraíso, o trabalho que se faz, não
é? e ao mesmo tempo as forças propondo o silêncio, emudecendo essa procura, não é? Mas você vê o “Novo Reino”, uma mulher que se une a um animal! O conto que dá título ao livro, “Sala de Armas” é assim vamos dizer, a independência, a autonomia do ser humano, em sua aparência máxima porque é um homem que se antecede à morte. Ele busca a morte. Não é o suicídio. Ele determina o dia, mais ou menos a época da morte dele e, para tal, ele abole todas as manifestações de vida em torno dele.

Esther- Um detalhe. Isto se encontra também em “Tebas”...
Nélida- É. “Tebas” então é... tem um caráter de desintegração, de crítica muito profundo, não é? E “Tebas” é um livro realmente, eu até tenho um trabalho em que eu explico muito “Tebas”, foi feito para um Congresso na PUC (Pontifícia Universidade Católica).
O que é “Tebas” pra mim? O que é “Tebas”? Eu explico em 30 páginas. Eu realmente nunca quis adotar uma função crítica em relação a mim mesma, sempre evitei muito, mas depois, fui muito pressionada e tal, convidada, então acabei cedendo, e foi uma experiência muito boa pra mim, sabe? Me fez voltar num texto, que eu já tinha vencido e ao mesmo tempo, como eu expliquei o texto, ao mesmo tempo,

Esther- Você poderia sintetizar essas trinta páginas desse trabalho para a PUC?
Nélida- Eu teria que pegá-los, e eu confesso a você que as coisas eu vou deixando assim, no meio do caminho, mas enfim, inclusive isso é uma coisa que eu coloco muito, eu podia até pegar... você quer que eu pegue um instantinho?
Eu vou pular pedaços hem?
“Eu nada tenho a dizer-lhes fundamentalmente, que não tenham os meus livros antecipado. Eu estou sempre em atraso quando admito a precedência dos meus textos. E sempre me antecipo sabendo que um livro futuro há de pôr-me em ridículo e contrariar todas as minhas afirmações presentes. Há muito estou entregue à tarefa de contrariar o meu tempo e o meu verbo. Tenho consciência da fragilidade do meu futuro, uma vez que teço obedecendo às irregularidades humanas.
Obedeço a um sistema de linguagem que se deixa afetar e fragmentar por pressões absolutas. E só não ouso negar as existência dos próprios textos, porque formam eles um roteiro ao mesmo tempo de capitulação e acertos, posto que nasceram, e hão de nascer, sempre que eu me permita nascer diariamente.
E aqui, se me perdoam, não é lugar para se nascer, não é estábulo, não é convergência de tolos capítulos humanos. É uma parada no meu tempo histórico, sem mútuas danificações. No entanto aqui venho com a intuição de que estou a fazer uma viagem ao passado e ao futuro simultaneamente, na companhia de vocês.
Ao passado sim, que antecedeu a existência de “Tebas”, e ao futuro, que permitirá “Tebas” ser o que vocês inventarem para ela. E também por ser “Tebas” o que desejo que seja, obrigam-me a inventar diante de vocês um “Tebas” que já não existe, repele radicalmente a minha companhia.”
Aí eu pulo... bá .bá, bá, bá, bá, bá, só para você ter uma idéia.
“Foi difícil para mim rastrear “Tebas “ no meu próprio coração. Ou passar a sugerir-lhes uma leitura possível. Eu nada mais fiz que defender e defenderei sempre, uma caravela solta e corrente e ventos selvagens.
Não quero oficializar-me diante de vocês, ou propor uma armadura para meu o texto. Fosse assim melhor não o tivesse criado. Minha realidade ficcional , por mais difícil que possa parecer, identifica-se com a de vocês. Nós coincidimos no tempo, embora a história nos disperse e crie sempre antagonismos. Vocês e eu estamos sujeitos a um mesmo exílio, se perdemos a memória e disfarçarmos o mito e a linguagem.
Quero terminar dizendo-lhes que a conversão de ”Tebas” em realidade, custou-me a própria realidade, e só a recuperarei e a terei de volta, se vocês admitirem os seus fragmentos, as suas dispersões, as volutas que mal se prendem às pedras ou às árvores. Se enfim acreditarem que nem vocês mesmos poderão criar uma realidade que enquadre o livro, e o explique a mim e a vocês ao mesmo tempo.”


Eu explico então como de certo modo nasceu “Tebas”. Você se lembra, Elza? Isso é uma coisa muito assim, a minha biografia. Eu explico que nasceu na Galícia, quando eu era menina. Entende? Mas aí, você não vai ficar cansada , não?

E Nélida retorna ao texto que apresentou na PUC.

“Seguramente a história do meu livro não é a minha história. Há muito abandonei os limites da história para tornar-me narradora, e ainda que proponha suceder-me a mim mesma, nada mais faço que anular os respectivos rostos que me tomam pelas manhãs.
Não é o autor a imagem que se vê no espelho, porque bem sabe que melhor se acomoda seu texto, nos estilhaços de um cristal partido. Sou mais bem
quem inventa, para dizer a verdade, quem manipula fórmulas para assumir compromisso total com o mundo, e suas criaturas. E minha fragilidade é o capítulo mais fundamental da minha longa carreira de invenções. Pois me devota a um trabalho, que se apoia em ter sido delicado e frágil, que me negará seus recursos secretos, logo que eu perca a coragem de desestruturar-me permanentemente, com o intuito de enfiar a faca no coração da linguagem, da vida, que é o coração do homem.
Sou quem sabe que talvez esteja se aproximando do seu período áureo como autora, ou já esteja talvez se afastando dele.
Sou quem trabalha sobre o material mais inexistente que é a criação, de tessitura de aranha. Mas que ainda assim é um fio que se reproduz pelo esforço da saliva, e como tal abandona lastro e brilho.
Pergunto-me antes e agora o que há de significar uma exposição canhestra, rústica como esta, sempre atingindo metade de si mesma, e renunciando a qualquer postulado teórico, a um linguajar que nada tem a ver com a história do homem, com o assunto de minha alma, quando crio solitária.
De todos os modos, aqui venho para refletir sobre o mundo que me acompanhou durante dois anos, e que penso perdido.
Venho, sabendo que jamais recuperarei as chaves que movimentaram o processo, antes enterrado em mim mesma, e à cujo estado inerte devolvi a criatividade, obrigando-o a caminhar, revelar-se, a expor-se tanto que outros me seguissem, me delatassem , fossem mesmo capazes de contar as contrafações do texto”.
Aí eu tenho aparentemente que o livro é produto de causa, etc... etc... etc... etc... Enfim , não e?
Eu falo ali, por exemplo, como é que de certo modo...
“Creio que “Tebas” foi o projeto mais antigo de minha vida. Creio mesmo que “Tebas”começou na distante Galícia, quando aos dez anos invadi os hemisférios de uma imaginação estrangeira, mas que era minha, por origem, e fui ingressando, navegando nos rios interiores de minha própria língua, ao manipular o galego, com a mesma naturalidade do português.
Em Galícia pressenti o universo da imaginação que, calcada no nada, ainda assim podia permanentemente destilar frutas, produtos secretos, a quarta dimensão do real, e as sementes mais imperativas do ser humano.
Para mim, os celtas ainda ali estavam, com seus rituais arcaicos, as cerimônias de pedra e folhas, as madeiras, o sangue, como produto de dor!
E para vê-los, e ver outras lendas também, bastava-me percorrer os montes, desmantelar a pequena ordem natural, desorganizar o próprio cotidiano, para tudo enriquecer, quer de seixos de rio, quer de episódios de caça, pesca, o aprofundamento na aventura, no aprendizado da voracidade humana.
Passeando por aqueles montes frios, quando acompanhava eu rebanhos e as vacas amigas, e temendo sempre os lobos, passei a aceitar que me inventassem as histórias que haviam os outros tecido, especialmente para eu ter medo e crescer.
Talvez a partir dessa época, tenha eu começado a compreender a temporalidade dos episódios que estavam em mim apenas enquanto eu estava neles, Mas que sempre se afastariam se eu não os ativasse.
Compreendi sim, que uma única palavra, tornava-se representação da minha história pessoal, muito mais que a minha história valia para fundamentar a minha memória. Passei então a considerar Galícia como matriz inicial, consciente, detectável, da minha invenção, dos meus vôos humanos.
A partir daquela viagem, ingressei no capítulo da linguagem, ainda que tão de forma pouco coerente, para já aos 13 anos, mais ou menos, presumir-me com uma linguagem selvagem, que na sua impotência e candura se quis excessivamente simbólica, como protesto talvez, pela insensibilização com que haviam cercado as palavras.
Ao longo dos anos defrontei-me basicamente com o problema da linguagem. A necessidade de tornar concreto o que se diz, que deve chegar à superfície luminosa da palavra. E para dizer, enfim, de modo a que não se esvaia o pensamento, sem que tal esforço eliminasse o sub-produto da linguagem com seu poderoso residual de húmus e esterco.
Deveria sim, pulverizar a sintaxe tradicional, mas antes fazer uso dela , até enfileirar, como uma formação romana, o que me coubesse na vida como símbolos, imagens, metáforas, que haveriam de erguer e sustentar a minha futura ficção.
Mergulhei no escuro porque, nesses assuntos não há luz. Sempre compreendendo que eu sim, e mais ninguém, poderia acentuar o valor dessa linguagem, dar pronunciamento válido ao mundo frásico, à unidade verbal. Atrair a mim a substância mesmo da palavra, seu ritmo, até mesmo seu aspecto floral, até que a destruí, ou pensei destruí-la, de modo a que me fosse abandonando o referencial imediato e sólido.
Para mim a abolição desse referencial foi torturante, porque me deixou só, incompreendida, e numa posição de quem deve aguardar os anos.”
Então um jogo muito delicado de valores, mas você entendeu?

Anibal- Você não pretende reeditar “Guia- Mapa”?
Nélida- Eu estou esperando um pouco. Já me pediram para reeditar o “Guia- Mapa”. Até noutro dia, uma amiga nossa, escritora, leu, não foi Elza? Mas eu quero que esse livro apareça, (Nélida falou sobre “A Força do Destino”), que “Tebas” seja mais um pouco absorvido, aí sim, seria a hora. Porque inclusive eu acho, que é um texto realmente pra época, surpreendente! E anterior há muito que se fez na América Latina, chamado mágico, literatura fantástica.
Lancei em 61, mas fiz em 57. Adolescente. Depois eu refiz a linguagem ! Mas a original é de 57.

Esther- E chegamos, finalmente à “A Força do Destino”. Você considera este livro um marco?
Nélida- "Tebas"... "Tebas"... é esse livro assim, é esse texto... Eu acho que é muito difícil, eu acho que quem deveria nos atribuir qualquer marco assim é o outro, não é? Enfim... mas na minha história pessoal?
Esther- Pela nossa conversa eu sinto que este livro seria um marco. E não pressinto esta tua indagação de que o auge de sua criação literária poderia estar ficando para trás...
Nélida- Isso é uma indagação fria. Mas não estou preocupada. Não me preocupa!
Esther- “A Força do Destino” me parece assim um marco para uma coisa que já houve, e para outra muito nova que ainda virá!
Nélida- Eu acho que “A Força do Destino” diz tão somente, além do aspecto de paródia, do aspecto do folhetim, o folhetim é a extensão da história, porque o folhetim tem um fôlego extraordinário, não é? é alguma coisa que não quer acabar, ou seja, alguma coisa que tem começo, que tem meio, mas não terá fim. Não precisa de fim! A vida é folhetinesca! Acrescenta, é.... ritualística, quer dizer, quanto mais você é mirabolante, mais a vida te supera. Ela é muito mais rica que qualquer folhetim que você possa atribuir a ela, inventar para ela. Então, independente desse aspecto, de folhetim, desse lado paródico do texto, o livro pensou também, buscou estabelecer uma reflexão sobre certos valores contemporâneos, e também em pensar sobre o ato de escrever.
Tendo eu como personagem, eu questionando, eu entrando no texto, e as limitações do autor, entende? Tanto que eu me coloco como cronista, na suposição que eu tenho limitações graves. E tanto que eu faço a crítica do romancista, que é um ser maldito e com pouco tino, qualquer coisa assim...
No fundo é a minha grande paixão o romancista, não é? Então eu faço a crônica da vida, da realidade. Supostamente, sem outras pretensões senão narrar, narrar quase que obedecendo a uma tradição oral. Agora, com reflexões sobre valores que nos questionam diariamente, e com os quais nós nos defrontamos a cada instante, sobretudo com o papel do artista, do escritor, do envelhecimento, o problema do amor ocidental, do tipo do amor ocidental, a instituição da família, a instituição amorosa sobre a qual regem-se todos os nossos princípios básicos. Isso tudo é muito questionado e fragmentado...

Esther- Quais os livros que estão sendo editados no exterior?
Nélida- “Tebas” está saindo agora em novembro, na Espanha. Já acabaram a tradução. Por sinal foi uma confusão enorme a tradução. Se eu contasse isso em livro, ninguém acreditaria. A história dessa tradução. Foi muito complicado, o tradutor ficou num desespero porque ele não atingiu o que ele podia, e o livro era superior às forças dele... então ele queimou! Olha, isso é absolutamente uma coisa para você não contar ... Só a desse outro novo tradutor, que é o tradutor do Guimarães Rosa, Angel Crespo...

Estou contando. Muitos anos se passaram. Mais de duas décadas. Se a recomendação ainda valer, eu a suprimo.

Bom... Eu tenho contos publicados, “O Fundador” em polonês, em espanhol . Há um contrato que está para se definir, “O Fundador” em inglês! “Tebas” em espanhol... “A Casa da Paixão” está sendo estudado mais de perto em alguns lugares, e contos publicados em vários lugares...

Esther- Por último, Nélida. O que é ser um escritor?
Nélida- Olha. Sobretudo esquecer todo esse lado que te corrompe, que te seduz, que te suborna... Evitar a crença, evitar crer no êxito! Q êxito é tão temporário... te é atribuído mas também te é sonegado. Evitar levar-se a sério demais, tentar concentrar suas forças e a sua energia, na vida, porque a vida é a resposta máxima, a vida é prioritária, e a vida te precede em tudo.
Eu acho que ser escritor é também reforçar, a cada dia, o seu mundo ético para poder continuar a escrever com serventia, com humildade, e escrever bem.
É continuar apostando, apesar de todas as desavenças, os dissabores, as dificuldades, a censura, é apostar no destino do homem.
Eu acho que ser escritor é não se preocupar com as subvenções que é possível, que o sistema te oferece, as instituições, os amigos... Subvenções em forma de palavras, em forma de prêmios, em forma de aplauso, sobretudo, para mim, ser escritor é continuar a narrar, é ser àquele que se aproxima do coração da vida. Sem medo. Sem transigência.
E também para mim ser escritor é àquele que sabe rir. Tem que ter grande humor! Senso de humor é fundamental para o texto.
Enfim, como você está vendo, estou enfileirando tantas características do que é ser escritor, que ser escritor é alguma coisa muito, muito difícil. Eu temo quase que se você não se cuida, você deixa de ser um escritor, com uma facilidade enorme, você passa a ser uma cópia de você mesmo, você se torna um ser muito mistificado, e mistificador.
E ser escritor também é assumir uma responsabilidade social, medir cada palavra. A palavra tem um sentido ético, não é só um sentido estético. Eu, a essa altura, já nem mais separo o estético do ético. Eu acho que se existe o estético, o estético tem que vir atrás do ético.
E também, meu Deus, eu estou falando demais, o que é ser escritor? é tanta coisa pra mim!... Você precisa se lembrar que a vida inteira eu me defini como escritora!
Todos os dias, mesmo que eu não tenha um convívio físico com a palavra, que eu não escreva, eu penso escrevendo. Eu me surpreendo com frases prontas, eu não deixo de ser escritora 24 horas por dia... na medida em que eu não separo a palavra da vida, não são elementos antagônicos!
Então, eu poderia definir o escritor de forma ilimitada, na medida que definindo o escritor eu estarei fatalmente definindo a vida!
Eu acho que o escritor é um ser que pulsa e que talvez, no seu coração, a vida seja mais premente, mais agitada, mais nervosa, menos necrosada! Deve ser o ser menos necrosado...
Então, eu prefiro dizer, que esses são alguns modos que eu encontro, e vejo assim, numa tarde tranqüila, já não é mais uma tarde, é noite quase, de definir o escritor.
Mas, sem dúvida, amanhã eu o definiria acrescentando outros elementos!



ENFIM!


Enfim, chegamos ao final da compilação das fitas gravadas.
As recordações que eu revivi foram muitas. Lembro-me de várias Nélida!
A que se emocionou até às lágrimas quando da primeira visita do Papa João XXIII ao Brasil, quando por um acaso, assistimos um momento desta visita pela televisão.
E sempre, sempre, a recordação que tenho de Nélida Piñon é de uma pessoa em movimento, incessantemente em movimento.
Certa vez, me tornei adepta da vida natural, o que sou até hoje, comprei uma terra maior em Pendotiba, Niterói, e fiz hortas, criei animais, sem agro-tóxicos, ou adubos químicos. Meu filho cresceu sem conhecer alimentação contaminada. O leite que tomava era o da cabra que criávamos, etc...
Certa vez, comentei isto com Nélida, meu entusiasmo! A verdura crescia com tanta abundância que a sobra podia ser comercializada. Ela se aborreceu porque viu que eu me afastava cada vez mais do meu propósito de escritora. E me disse: vá ser então quitandeira!
Foi a cobrança que guardo até hoje com carinho. Para quem era visceralmente escritora não era agradável ver alguém, que talvez pudesse sê-lo, mudando de rumo.


Bem. Eu lhes contei uma história. Deixei várias perguntas sem respostas e deixei de fazer várias perguntas.
E, infelizmente, meu registro vai até o livro “O Calor das Coisas”, como já disse.
Não sei se este material tem o valor que lhe dou, para os outros. Espero que tenha. Pois aqui está se tratando de uma grande escritora e de um grande ser humano: Nélida Piñon. E mais, aqui se falou sobre assuntos que muito poucas vezes são comentados, ou apenas, a angústia deles é passada em texto ficcional.
Aqui se ousou, mais apropriadamente, Nélida Piñon ousou, como nunca assisti a outro ser humano ousar! Se desnudou, impudicamente, de todas as máscaras que nos acompanham em momentos de exposição pública.
Eu acredito muito que esta conversa resgata um passado onde se pensava, se conversava e se era sempre atento aos nossos posicionamentos éticos e estéticos.
Muitas vezes, ouvindo estas fitas senti vergonha de algumas perguntas que fiz, por as considerar tolas, de algumas afirmações, de não permitir algumas vezes que a escritora desse seguimento a seu raciocínio, lastimando o quanto todos havíamos perdido com as interrupções que fizera, devido ao hábito de repórter da geral, desconhecendo ainda que haveria ou havia, um grupo de historiadores, que adotavam a prática da história oral, que não cassava a palavra do entrevistado.
Lembro que, de um só feita foi quase um dia inteiro de gravação. Sem qualquer impaciência da escritora que perdoava de bom grado os erros de avaliação e a tentativa crítica da repórter.
Sempre lhe serei grata por poder ouvir e reler este encontro, que considero do mais puro encantamento.
Saio deste trabalho tomada pela poesia de Nélida Piñon e vejo hoje, nos meus pobres poemas, muitas vezes sem pressentir, a repetição de frases ditas ou escritas por ela. Sinto hoje o tamanho da influência que ela exerceu sobre mim. E sei, tenho certeza, ousando mais uma vez fazer uso do papel de avaliadora, que ela é a maior poeta prosadora da língua portuguesa!
Aí está o material gravado que eu tenho sobre a escritora! E minhas lembranças datadas de mais de 30 anos. Sugeri a Nélida Piñon, por telefone, que complementasse esse trabalho, expondo como pensa hoje, sobre os mesmos assuntos. Afinal, somos mutáveis, e como! Aguardaremos suas intenções.



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