sexta-feira, junho 25, 2004

leitura soturna para sábado


Em algum lugar do passado, Lula e o SOL

Gilson Caroni Filho*


em Actualidade Galiza 25.06.2004

Imaginar que o capital financeiro se reconverterá em investimento produtivo redentor é exercício de saudosismo liberal. Propor enfrentamento contra os países ricos ao mesmo tempo em que, internamente, submete-se o país a um fiscalismo que tem por objetivo fazer caixa para pagamentos de juros da dívida externa é jogo de cena barato ou manifestação da esquizofrenia já detectada na Casa Civil da Presidência? Como conciliar vontade política para confrontar injustiças ao mesmo tempo que está assegurado ao credor o cumprimento de contratos que deveriam ser auditados?

Mesmo reconhecendo que "o mundo mudou e as condições são outras", Lula, assim como já havia defendido o New Deal, exigência resultante da crise mundial de 1929-1933, pregou a adoção de um Plano Marshall para mudar o cenário econômico mundial. Visando a uma maior integração entre países pobres para enfrentar os países ricos, o presidente brasileiro propôs reativar o Sistema Global de Preferências Comerciais (SGPC) que possibilita a progressiva redução de entraves comerciais entre 84 países periféricos sem a inclusão dos países capitalistas mais avançados. Comovido, o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, elogiou a iniciativa.

O que pode haver em comum entre a fala do presidente Luiz Inácio da Silva na abertura da XI Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad) e o programa partidário provisório do recém-fundado Partido Socialismo e Liberdade (SOL)? Qual o ponto de interseção entre os setores mais conservadores do PT e uma agremiação que surge para, supostamente, retomar e avançar as reivindicações históricas abandonadas pelos petistas no exercício do governo? Ainda que, movidos por estratégias distintas e aparentemente em campos opostos, o que une forças tão díspares é uma palavra muito celebrada na língua portuguesa: saudade.

Definida no Novo Dicionário Aurélio como "lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo suave, de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de tornar a vê-las ou possuí-las", a tal palavrinha costuma produzir versos enlevados e músicas inesquecíveis. Quando transposto para o campo político, onde a licença poética é um corpo estranho, o saudosismo pode ensejar táticas desastrosas e projetos inexeqüíveis.

Mesmo reconhecendo que "o mundo mudou e as condições são outras", Lula, assim como já havia defendido o New Deal, exigência resultante da crise mundial de 1929-1933, pregou a adoção de um Plano Marshall para mudar o cenário econômico mundial. Visando a uma maior integração entre países pobres para enfrentar os países ricos, o presidente brasileiro propôs reativar o Sistema Global de Preferências Comerciais (SGPC) que possibilita a progressiva redução de entraves comerciais entre 84 países periféricos sem a inclusão dos países capitalistas mais avançados. Comovido, o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, elogiou a iniciativa.

O problema é que o plano de reconstrução da Europa e do Japão só ocorreu, além da necessidade de contenção da União Soviética, por conta da necessidade do capitalismo estadunidense de recompor uma base mundial de consumo. As inversões de aproximadamente US$ 150 bilhões entre 1948 e 1952 só foram possíveis graças às assimetrias regionais existentes. Eram aportes solicitados pelas grandes corporações de um país incontestavelmente hegemônico, dono de capacidade produtiva sem precedentes. Em suma: os anos dourados de um sistema eficiente. Bem distante da economia vulnerável de hoje. Incapaz, em vários segmentos, de fazer frente aos concorrentes europeus e asiáticos. Dependente da poupança externa para financiar seus déficits. Belicosos e parasitários, os Estados Unidos são a versão político-econômica do "Retrato de Dorian Gray". Em breve, Bush cairá da moldura de onde um fantasmagórico Roosevelt o observa.

Imaginar que o capital financeiro se reconverterá em investimento produtivo redentor é exercício de saudosismo liberal. Propor enfrentamento contra os países ricos ao mesmo tempo em que, internamente, submete-se o país a um fiscalismo que tem por objetivo fazer caixa para pagamentos de juros da dívida externa é jogo de cena barato ou manifestação da esquizofrenia já detectada na Casa Civil da Presidência? Como conciliar vontade política para confrontar injustiças ao mesmo tempo que está assegurado ao credor o cumprimento de contratos que deveriam ser auditados?

Por outro lado, o programa do SOL, que se apresenta como alternativa ao PT, é outro exemplo de persistência em sonhos do passado. Refuta o que chama de conciliação de classes e pugna pelo "internacionalismo proletário". Parece ignorar as modificações estruturais ocorridas no mundo do trabalho. Opera nos marcos de uma cultura classista típica da fase industrial do capitalismo. Uma ideologia que ignora não apenas a perda de centralidade da força de trabalho, mas sua inserção no sistema como força integrada. Na realidade, o proletariado, após a revolução digital-tecnológica e a primazia do capital financeiro, sea figura mais como fração do que negação do capital. Como exercício empírico, seria interessante notar a lógica e composição dos fundos de pensão. A mundialização neoliberal mostrou o quanto o sujeito universal tinha de idealização romântica.

Constituir uma perspectiva emancipatória, alternativa ao modelo societário do capitalismo contemporâneo, requer uma acurada análise da sua dinâmica atual. Os novos cenários e atores não podem serolvidados em sua concretude. Fechar os olhos para a anomia produzida pelo capital,enclausurando-se em modelos explicativos de uma realidade pretérita, não representa apenas abdicação analítica. É tolice perigosa ignorar as contradiçoes emergentes.

Enquanto não se rompe o círculo vicioso das interpretações forjadas na fase romântica do industrialismo, os argumentos brandidos, tanto pelo governo quanto pelo SOL, soam como saudade de uma fase acumulativa que terminou. En fim, fazer política requer bem mais engenho que nos tempos de Roosevelt e Trotsky. Encarar a realidade é um grande passo. Tal vez o mais fundamental de todos.


*Gilson Caroni Filho é professor-titular de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso-Facha-Brasil.
[Artigo enviado a www.galizacig.com polo autor, 20 de xuño de 2004

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