quarta-feira, novembro 17, 2004

lembrança, nana, puxa! lembrança.


"Lembrança
Lendo este texto lembrei-me do meu avô que era tropeiro. Em torno de 1920, viajou do Rio Grande do Sul até São Paulo a cavalo. Dizem que ficou por aqui porque conheceu uma bela morena (minha avó) e se apaixonou. Mas eu acho que essa viagem foi tão sofrida que ele não quis pegar o caminho de volta.
Espero que o sol não se acabe, amiga, porque detesto tomar banho de água fria.
Beijos.
Nana Siqueira"


o comentário da nana fez-me lembrar de um tropeiro com quem convivi durante alguns meses numa fazenda em silva jardim no estado do rio. o nico pichixica. nico era um homem instruído , antenado, como se diz hoje , conhecimento político impecável e lia seu jornal todo santo dia. tropeiro a vida inteira levava, como contou, gado por este brasil de ai meu deus, atravessando as porteiras de tudo quanto era estado.

parou quando a mulher ganhou coragem para solicitar.

só que o jornal que o nico lia era sempre da semana anterior. o patrão, o ex- vice-governador cassado do estado do rio joão batista da costa levava todos os sábados para ele os jornais da semana que passara, quando pagava os trabalhadores da fazenda.

sentado à mesa posta ao tempo, sob uma árvore, o colono se achegava, trocava meio dedo de prosa com o patrão, tomava um café e ia para a cidade, numa kombi da fazenda, sem que nada a mais lhe fosse cobrado, fazer as compras. geralmente de material de limpeza, sapatos e panos para roupa, pois o demais havia na terra.

a kombi servia também para evitar que o dinheiro da semana fosse
"corrompido" em cachaça, termo empregado pelo nico, pois havia de ser cumprida a hora do retorno.

lógico que estou falando de um fazendeiro que acreditava no socialismo e praticava o zen-budismo.
estava eu lá em descanso, após algum tempo no doi-codi de são paulo refazendo a alma . às noites jantava a boa refeição que a mulher do nico preparava e conversávamos sobre o destino político do mundo. retornava para a casa grande com a noite adiantada assustando os colonos, segundo me foi contado depois pelo amigo joão. eles me tinham como assombração pois não temia andar no meio do pasto em tal hora da noite.
como não "veve com medo" deveria ser uma delas.

pois é, nana. alguns anos mais tarde , com meu filho, refiz alguns dos
passos de guimarães rosa no livro "grande sertão e veredas" que li na
fazenda de silva jardim, protegida pelas enormes raízes de um fícus
centenário, que eu transformara em minha caverna de leitura.

no final da década de 70 saí de cordisburgo, após uma conversa com
manuelzão, o manuel nardy, que me contou mais alguns vinténs de boa prosa.na ocasião, um vaqueiro aposentado pelo funrural.

“nasceu em dom silvério e passou os quase 93 anos de sua vida vivendo a maior parte dela no sertão mineiro. ficou órfão de pai quando ainda era criança. também foi cedo que decidiu sair de casa para vencer na vida. o primeiro emprego foi como cozinheiro de tropa, que o levou a conhecer bem o interior de minas. no início dos anos 50 conheceu joão guimarães rosa, na época, autor já consagrado pelo livro "sagarana". o escritor passou uma temporada no sertão mineiro tendo como guia o senhor nardy. o resultado dessa viagem
foi o romance "grande sertão: veredas" e a convivência entre os dois
inspirou a criação do personagem "manuelzão", do livro "manuelzão e
miguilim". manuelzão dizia que guimarães rosa foi uma mudança na vida dele. "quando eu agüentava trabalhar, eu estava sempre ocupado. se eu não conheço ele, eu hoje estava um velho encravado. ninguém ia lembrar de mim. pois se velho nem consegue trabalho! eu não aprendi muito com ele porque tudo o que ele perguntava, anotava num caderninho. mas a gente não anotava nada do que ele dizia. então, esqueci muita coisa".http://www.manuelzao.ufmg.br/quemfoi/quem-bio.htm

puxando mais o fio do barbante, nana, lembrei com saudades da silvinha, filha do joão batista da costa que não vejo tem mais de dez anos. mas recordei com prazer de idos, contados e vividos.

obrigada, nana, por acender a vela.
beijos

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