quarta-feira, março 16, 2005






a tecnologia evolui mais que a ética: a corrosão do caráter*

conversa com sonia grisólia


convidei ana laura diniz**, autora de "contos de bordel" e uma das últimas conversa do porcas e parafusos (antes do matusalém matusca) para participar deste momento com sonia grisólia, diretora da wwwriters sistemas (http://wwwriters.com.br/new/index.php) "empresa especializada em integrar soluções para a internet e gerenciar o relacionamento com o cliente virtual."

os enfoques são diferentes e diferente é também a fonte que ela usa: trebuchet ms-12. eu prefiro a baskerville old face , mas tanto faz pois no blog a fonte, se não me engano, é a verdana. no mais rimos juntas, fundamental para uma boa parceria.

há um movimento na europa chamado slow food international association - cujo símbolo é um caracol- com base na itália: www.slowfood.com .

serve de base para um movimento mais amplo , o slow europe que questiona a "pressa" e a "loucura" gerada pela globalização, o apelo à "quantidade do ter" em contraposição à qualidade de vida ou à "qualidade do ser".

disse o médico: é preciso ajudar o fígado, o pâncreas e áreas afins a processar o alimento com mais eficiência. "mastigue cada porção levada à boca no mínimo 10 vezes. permita que a bílis tenha tempo para escoar.

tempo é o que nunca nos damos e nossa bílis não flui, os sentimentos, em geral, são medidos pelo dinheiro que cada um tem no banco e a necessidade de aumentar o fluxo de caixa para nos apresentarmos ao mundo como pessoas bem sucedidas com o carro do ano, casa na praia, e antenados com as novidades de uma realidade da qual já não fazemos parte: a nossa. tudo pela mais valia!

sonia grisólia em algumas intervenções no grupo telework brasil levanta questões sobre valores, ética e pergunta onde está a vida que deveria ser vivida. com a naturalidade de quem não tem nenhuma verdade ou resposta pronta a oferecer, ela fala conosco sobre tecnologia, desenvolvimento, ética, comportamento, política, economia e sociedade.

diz ela:
"há uns 2 anos eu li o ócio criativo de domenico de masi que falava
sobre a tecnologia como um meio pelo qual o homem poderia deixar o
trabalho braçal e pesado no passado e dedicar-se a atividades mais
criativas e nobres. o mundo desenhado por de masi me pareceu fantástico
na época (e ainda me parece). o problema é que não estou vendo ele
se realizar em sua plenitude."



sonia grisólia

perguntas formuladas por esther lucio bittencourt:

sonia, quando o mundo inventou a sociedade industrial todos esperavam a mesma coisa; e no entanto houve desemprego, como vemos hoje, famílias perdendo seu espaço na sociedade, caindo aceleradamente na escala social, e consequëntemente a diluição de valores tidos como importantes para uma sociedade organizada e respeitosa. o que provoca o inverso do apregoado, do esperado, cada vez que uma nova mudança econômica é instituída, a seu ver?

>>> não acho que aconteça o inverso ou que mudanças sejam ruins. há sim um momento de aparente caos até que as coisas se acomodem. não sou contra a evolução e nem digo que o que acontece agora está errado. apenas questiono algumas prioridades, mas sou consciente que a tecnologia evolui mais rápido do que os conceitos sociais e éticos que regulam as relações humanas. talvez eu lamente o fato de não estar viva para aproveitar o mundo desenhado pelo de masi…

sinto-me como advogado do diabo, mas estas traquitanas que seduzem as pessoas existem e sempre existiram. desde quando o primeiro homem desejou a pedra que servia de arma ao seu companheiro primitivo, e o matou para ficar com ela ou a trocou por um punhado de raízes. não seremos nós que nos distraímos de nós porque há algum componente em nosso dna que exige futilidade e abstrações, em vez de convivência com a realidade em torno?

>>> a realidade é chata. e como todo mundo, não gosto do que é feio. o ser humano desde que se descobriu consciente busca a beleza, a harmonia e tem uma atração irresistível pelo fútil, pelo alegre. no entanto, não é isso que questiono. o amor ao belo não aliena, necessariamente. ou você acha realmente possível toda a organização social ser baseada apenas no que é fútil?

"não se afobe não que nada é pra já...", como canta o chico. será? alguma coisa do que foi prometido por cada fase de transição social e econômica será que um dia nos alcançará? ou como disse john lennon: "a vida é aquilo que acontece enquanto fazemos planos para o futuro"?

>>> eu acho que john lennon é um bom filósofo…

a visão do mundo que nos orientou no passado, religiosas, econômicas, familiares, afetivas, são insuficientes para justificar o presente e antecipar o futuro, daí o anseio por novas utopias e a incapacidade de sonhar no sentido de almejar. mas isto aconteceu em todos os momentos históricos em que a sociedade pretendeu ter alavancado o progresso. e nisto o ser humano perdeu seu tino, rumo e consciência? ou há algo mais profundo e arcaico para que tenha havido a "corrosão do caráter"?

>>> na história cada movimento revolucionário passa por etapas que podem ser resumidas mais ou menos assim:
- perda dos referenciais
- anseio por uma nova utopia
- momento de ruptura (a negação do passado)
- perda do rumo e consciência (caos)
- tentativas (vários caminhos)
- acomodação = iluminação


penso que o vivemos agora é um pouco diferente porque não chegamos a completar um ciclo e outro se sobrepõe com novos desafios sociais, ético e econômicos. veja, a tecnologia resolveu o problema da fome no mundo. então, por que ainda existem pessoas com fome? porque ainda não evoluímos política e economicamente. e antes que um desafio tão básico como a fome seja resolvida a humanidade se vê diante de outros desafios éticos como a clonagem, etc. todos se sobrepõem e antes que uma discussão esteja concluída outra igualmente importante começa, muitas vezes invalidando a anterior e… assim caminha a humanidade hoje em dia!!!

do ponto de vista individual, é cada vez mais comum os ciclos não se completarem, as histórias de vida mudarem rapidamente por um fator qualquer. pense: quantas vezes você já mudou de casa? de emprego? quantos amigos de infância você mantém contato freqüente? quantas pessoas podem ser consideradas testemunhas da tua história? compare a tua vida com a dos teus avós e… é muito diferente, não é mesmo?

seria preciso, sem ajuda de dicionários e conceitos filosóficos definir o que para cada um de nós significa caráter. você quer ser a primeira a tentar?

>>> para mim o conceito de caráter não permite dúvidas, discussões e nem interpretações. caráter é a capacidade de confiar e despertar confiança. ponto final.

ou seria a revolução tecnológica, mal apreendida, fundada com o fito de nos oferecer ócio criativo, riquezas e qualidade de vida a facilitadora do surgimento de uma sociedade sem juízo, sem senso, e sem caráter ou com o caráter corroído?

>>> a revolução tecnológica está mesmo oferecendo tudo isso à humanidade? ou será que alguns seres humanos são mais seres humanos do que outros nessa sociedade? eu vejo uma sociedade calcada em castas e privilégios. às vezes me parece que não estamos muito diferentes da idade média, só disfarçamos melhor.

nos anos 60/ 70 falava-se em crise do ocidente quando a tecnologia entrou em nosso cotidiano prometendo livrar o ser humano da fadiga física; quando a mídia exibe a degradação da sociedade, de seus governantes e a publicidade afirma como correta a falta de caráter, de princípios honestos ou seja que o errado é quem não rouba nem trapaceia. que o bem sucedido precisa de mil traquitanas para demonstrar seu sucesso. mas isto não faz parte do esquema de uma sociedade doente e desorientada? não a tecnologia, mas a pessoa que a usa, a está usando ou como queríamos demonstrar se exibe a partir de supor sua posse?

>>> como eu disse, o ser humano evoluiu muito pouco desde a época dos romanos ou mesmo antes

em verdade, sonia, em nenhum momento da história eu estudei qualquer menção da união dos homens em torno de uma idéia produtiva para o enriquecimento humano que não fosse guerras, disputas e opressão de outros seres. cito como exemplo a obra do bardo shakespeare, "henrique v", onde uns poucos trucidaram muitos em nome de são crispim e de seu rei que o invocou. nesta época eles cortejavam lanças e espadas em vez de celulares e palms...

>>> acho que nem precisavas ir tão longe. basta olharmos o oriente médio hoje...

eu não li o livro corrosão do caráter de richard sennett, mas pergunto se a informática e a tecnolgia teria a ver alguma coisa com isto - a corrosão do caráter - ou ele sempre foi, o caráter, um aposto, uma metáfora para enaltecer determinada sociedade ou grupo que estariam livres para sem tê-lo cobrá-lo de outros com o fito de auferir algum lucro?

>>> boa pergunta…

você fala da ausência de contato humano mesmo quando as pessoas estão juntas, de um endeusamento da tecnologia, que jung definiu como : "a questão eterna no ser humano entre ser e ter".

>>> no seriado star trek a sociedade humana não se baseia mais no ter. tanto que não existe mais dinheiro ou propriedade. o desafio de vida que cada ser humano se propõe é o aperfeiçoamento do seu caráter… mesmo assim, existem muitas pessoas mesquinhas… mas normalmente são de outras espécies (risos). tomara que um dia sejamos assim.

estas competições nos remetem ao mundo infantil quando o carro do pai da gente era o mais possante ou ele era o homem mais importante. hoje sem maquiagem as crianças usando roupas formais de adultos continuam suas disputas. parece que caiu a máscara de um mundo que nunca cresceu, porque crescer significa assumir um papel, qualquer que seja ele, perante si mesmo.

>>> adão e eva foram expulsos do paraíso porque provaram da árvore do conhecimento e descobriram o bem e o mal. para mim, crescer significa perder a inocência e escolher a cada minuto da vida o bem ou o mal. ninguém escolhe só o bem, nem só o mal durante uma vida. nos revezamos entre generosos e mesquinhos, frios e emocionais, amorosos e odiosos, milhares de papéis. em resumo: não vejo esta configuração injusta de mundo como um capricho de crianças, porque a humanidade não é inocente e assim como o bem existe, o mal também é um fato.

cícero, ovídio, modernamente paul lafargue, o genro de marx, e bertrand russel e mais hodierno, domenico de masi falaram sobre o ócio, a preguiça e a criatividade fazendo parecer que o mundo seria como as bucólicas de virgílio. este apelo pelo ócio criativo beira a tragédia num momento em que o desemprego anda pelas tabelas, em que o regime de trabalho é semelhante ao feudal, porque um sistema econômico é substituído por outro e isto tem muito pouco a ver com tecnologia e sim com a mais valia, com a ditadura econômica que determina como podem trabalhar os povos do terceiro mundo, em tarefas inferiores, enquanto os do primeiro ocupam os céus. é uma ironia, mas a seleção genética já está em andamento há muito tempo, e goebbels fincou pé na propaganda com sua técnica de que não importa o fato, mas sua versão, repetida ad infinitum. portanto, não importa que os celulares toquem, mas que o toque de cada um provoque o desejo do outro de possuir o do semelhante que sempre será melhor?

>>> esther, eu não tenho tanto conhecimento acerca dos filósofos e pensadores, mas reafirmo: o problema não está no avanço da tecnologia, mas em como a humanidade lida com isso. veja o caso das pesquisas de células-tronco em embriões humanos. nos dizem que está tudo bem pois somente serão utilizados embriões excedentes que iriam para o lixo. não nego os benefícios das descobertas, mas não consigo evitar um certo desconforto diante do fato de que produzimos embriões humanos que vão… para o lixo e isso é considerado normal. agora, vão para pesquisas médicas. legal, assim evitamos desperdício!!! e os animais utilizados nas mesmas pesquisas médicas? você já viu as fotos das torturas a que estes seres são submetidos?

(nem eu, sonia, leio muito, só isto)

outro dia estava vendo um programa de ficção científica e um ser humano foi tomado por um et que se uniu a ele simbioticamente. existia o conhecimento para separá-los, mas este conhecimento tinha sido obtido por um médico que realizava pesquisas em seres humanoides através de processos anti-éticos (como na alemanha nazista). e daí? não usa o conhecimento e os pacientes morrem ou usa o conhecimento, salva os 2 pacientes, e com isso dá um aval a este tipo de pesquisa? o que vale mais: a vida de um ser ou o caráter de uma sociedade?


perguntas formuladas por ana laura diniz:

todo mundo tem por igual - nem mais, nem menos - 24 horas por dia. mas diversas empresas como o unibanco, que oferece "30 horas" por dia aos seus clientes, investem em fórmulas que "supervalorizam" os seus produtos e serviços em nome da tecnologia e do progresso global. onde ficamos na ordem prática das coisas entre a realidade e a ficção?

>>> no lugar de sempre: consumindo.

e o atendimento ao cliente na maioria dessas lojas como americanas.com e submarino? qual o poder do consumidor frente a virtualidade dessas empresas? quais são seus direitos, seus deveres e como devem se comportar nesse processo?

>>> todos os direitos e deveres que valem para uma loja off-line, valem para uma on-line. se algo não for cumprido de acordo com o combinado, basta buscar os direitos no código do consumidor.

manuel castells, autor espanhol de mais de 20 livros, entre os quais a famosa trilogia "a era da informação: economia, sociedade e cultura", e membro do comitê de especialistas sobre a sociedade da informação da comissão européia e do comitê assessor da secretaria-geral das nações unidas sobre tecnologia da informação e desenvolvimento global, afirmou em entrevista para o jornal "le monde" que dispomos de elementos suficientes para demonstrar que a internet não isola e tampouco é um instrumento de poder ou do mundo dos negócios. "pelo contrário, é um espaço descentralizador e cidadão. a internet é um fenômeno econômico, social e político, mas não é nem uma tecnologia que traz em si a solução global aos problemas da humanidade, nem um sistema que cria desigualdades sociais". se não cria, enfatiza. ou a exclusão digital é irreal? como ficarão as pessoas que nada entendem "dessas máquinas"? como será o futuro delas no mercado de trabalho?

>>> essas pessoas já utilizam caixa eletrônico, telefones, compram rancho com cartões alimentação dados pela empresa, carregam o seu cpf eletrônico, etc. caminhamos para uma unificação digital e dificilmente alguém conseguirá se isolar do sistema de informação. a internet é apenas base/estrada por onde trafegarão todas estas informações. isso é uma coisa.
outra coisa é a exclusão. digital ou não ela continuará como a pior chaga da humanidade até que as regras de poder econômico e político se alterem e se voltem para beneficiar a maioria.

veja ana, não entender "dessas máquinas" não torna ninguém um excluído. pode até ser uma opção pessoal. excluído é quem não tem acesso a saúde, trabalho, comida, educação, justiça, dignidade, etc.

a internet é uma tecnologia, sim, mas para fazer o quê? muitos agem de forma exclusivista, tornam a internet para si, mas o que eles, por sua vez, acrescentam para a rede? que noção as pessoas precisam ter de toda essa parafernália?

>>> a internet é apenas um caminho por onde trafegam informações. simples assim. por outro lado, as informações… bom, daí voltamos ao papo do bem e do mal da pergunta da esther...

o mundo da informática hoje se resume em internet? internet é a palavra chave pra tudo?

>>> não. informação é a palavra-chave para tudo. ontem, hoje e sempre.

a produção de informação e entretenimento cresce significativamente, enquanto o armazenamento e a distribuição de informação estão cada vez mais baratos. há suficiente demanda para absorver toda esta produção?

>>> caminhamos para a ultra-segmentação da informação. imagine que temos 5 bilhões de pessoas no mundo. que tal 5 bilhões pessoas com necessidades de informações diferentes e que mais cedo ou mais tarde pedirão de pacotes personalizados de informações … acho que existe demanda sim!

o fórum social mundial mostra as premissas de uma sociedade civil mundial capaz de se mobilizar por grandes causas. a internet tem um papel maior neste processo?

>>> com certeza. a internet facilitou o acesso a informações e isso é a base de qualquer movimento…

hipocrisia total. depois do "arrastão tsunami" ninguém fala de outra coisa, e várias empresas dançam no auê da tragédia para que se encham as sacolinhas de "tim tones" (personagem humorístico criado e vivido por chico anysio na década de 80). em nome do amor, da guerra, de deus, muita atrocidade se faz... afinal, alguém sabe quantificar o número de "tsunamis" que vive-se diariamente nesse pau-a-pique chamado brasil? a massa permanece mais massa e a elite intelectual se faz de cega, surda e muda. afirmar que cada vez mais os brasileiros estão menos preparados cultural, social, educacional e profissionalmente virou lugar-comum. a questão é: de que adianta tanta fanfarra tecnológica se aqui as pessoas mal sobrevivem e as que se dizem "estudadas", mal sabem interpretar aquilo que vêem? lêem, mas são incapazes de correlacionar uma informação a outra. a internet termina, dessa forma, por exercer um papel superficial, vazio e curto diante a tanto volume de notícias e informações diárias?


>>> cito manuel castell: "a internet é um fenômeno econômico, social e político, mas não é nem uma tecnologia que traz em si a solução global aos problemas da humanidade, nem um sistema que cria desigualdades sociais".

sonia enfatiza questões importantes. e se a tecnologia não cria desigualdade social, não é de todo errado afirmar que ela a realça. já ultrapassou a urgência de as autoridades responsáveis se cobrirem de dignidade e respeito para com o seu povo.

saúde, educação, cultura e uma política sócio-econômica-social mais justa não deve ser artigo de luxo. o fim de um ciclo é sempre o início de outro de mesma ou maior demanda. na esperança dias melhores frente a tanto avanço tecnológico, a vida segue seu fluxo no tempo do tempo do mundo. (ana laura)


Mais sobre sonia grisolia: http://www.widebiz.com.br/gente/pires/domenico.html entrevista com domenico de mais
http://www.multivirtual.com.br/informacao/articulista.php?codigo=12 Sônia Grisolia. Diretora da wwwriters Sistemas, empresa especializada em integrar soluções para a internet e gerenciar o relacionamento com o cliente virtual. Participou da idealização da wwwork, comunidade dirigida aos micro e pequenos empresários, profissionais autônomos e liberais. - vários artigos
http://www.serprofessoruniversitario.pro.br/ler.asp?TEXTO=567 wilson azevedo fala sobre dúvidas se sónia grisólia sobre ead, educação à distância.


*o livro "a corrosão do caráter" é de Richard Sennett

**ana laura diniz. idade, 28. é jornalista e co-autora do livro "contos de bordel - a prostituição feminina na boca do lixo de são paulo", que venceu o 3º prêmio volkswagen de jornalismo, categoria livro-reportagem, além de produtora musical, atriz e letrista.





Nenhum comentário: