sexta-feira, agosto 12, 2005





Discurso da Servidão Voluntária


Etienne de La Boétie

Homero conta que um dia, falando em público, Ulisses disse aos gregos: "Não é bom ter vários senhores, tenhamos um só".

Se tivesse dito apenas: não é bom ter vários senhores, teria sido tão bom que nada poderia ser melhor. Mas em vez disso, e com mais razão, deveria ter dito que a dominação de vários não poderia ser boa, já que o poderio de um só é duro e revoltante quando este toma o título de senhor: ao contrário, vai acrescentar: tenhamos um só senhor.

Todavia, é preciso desculpar Ulisses por ter mantido esta linguagem - que lhe serviu então para apaziguar a revolta do exército - adaptando seu discurso, creio eu, mais à circunstância que à verdade. Mas com toda consciência, não é uma extrema infelicidade estar-se sujeito a um senhor de cuja bondade nunca é possível se certificar, e que sempre tem o poder de ser mau quando quiser? E obedecer a vários senhores não é ser tantas vezes extremamente infeliz? Não abordarei aqui esta questão tantas vezes agitada: " a república é ou não preferível à democracia?". Se tivesse de discuti-la, antes mesmo de procurar a categoria que a monarquia deve ocupar entre os diferentes modos de governar a coisa pública, gostaria de saber se se deve atribuir-lhe uma, visto que é bastante difícil acreditar que nela haja realmente algo de público. Mas reservemos para um outro tempo essa questão que exigiria um tratado à parte e acarretaria por si mesma todas as disputas políticas.

No momento, gostaria apenas que me fizessem compreender como é possível que tantos homens, tantas cidades, tantas nações às vezes suportem tudo de um Tirano só, que tem apenas o poderia que lhe dão, que não tem o poder de prejudicá-los senão enquanto aceitam suportá-lo, e que não poderia fazer-lhes mal algum se não preferissem, a contradize-lo, suportar tudo dele. Coisa realmente surpreendente (e no entanto tão comum que se deve mais gemer por ela do que surpreender-se) é ver milhões e milhões de homens miseravelmente subjugados e, de cabeça baixa, submissos a um jugo deplorável: não que a ele sejam obrigados por força maior, mas porque são fascinados e, por assim dizer, enfeitiçados apenas pelo nome de um que não deveriam temer, pois ele é só, nem amar, pois é desumano e cruel para com todos eles. Tal entretanto é a fraqueza dos homens! Forçados à obediência, forçados a contemporizar, divididos entre si, nem sempre podem ser os mais fortes. Portanto, se uma nação, escravizada pela força das armas, é submetida ao poder de um só (como foi a cidade de Atenas à dominação dos trinta tiranos), não é de se espantar que ela sirva, mas de se deplorar sua servidão, ou melhor, nem espantar-se nem lamentar-se: suportar o infortúnio com resignação e reservar-se para uma ocasião melhor no futuro.

Somos feitos de tal modo que os deveres comuns da amizade absorvem boa parte de nossa vida. Amar a virtude, estimar belas ações, ser gratos pelos benefícios recebidos, e, freqüentemente até, reduzir nosso próprio bem estar para aumentar a honra e a vantagem daqueles que amamos e que merecem ser amados - tudo isso é muito natural. Se, portanto, os habitantes de um país encontram entre eles um desses homens raros, que lhes tenha dado provas reiteradas de grande providência para garanti-los, de grande audácia para defendê-los, de grande prudência para governá-los; se insensivelmente, habituam-se a obedecê-lo, se até confiam nele a ponto de atribuir-lhe uma certa supremacia, não sei se tirá-lo de onde fazia o bem para colocá-lo onde poderá malfazer é agir com sabedoria; no entanto, parece muito natural e razoável ser bom para com aquele que nos trouxe tantos bens e não temer que o mal nos venha dele.






"Libelo renascentista contra a servidão e a opressão em todas as suas formas. Antecipou muitas questões políticas que tomaram forma apenas no século XIX. "

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