quinta-feira, dezembro 29, 2005

assim,

desastres.jpg


assim,


foi um toque.
olhou-se no espelho do fundo da panela e viu seu rosto.
foi um toque do entregador de gás.
nem saberia dizer qual a palavra. mas alguma entre o bom dia e até a próxima, obrigado. a família chegava ruidosa em casa e ela perdida no espelho do fundo da panela onde faria arroz.
-aí véia, a bóia tá pronta?
sentiu o beijo estalar no rosto que não era seu e a pergunta esbarrar nas paredes. vindas de tão longe que lembravam eco.
o arroz lavado, cebola picada, manjericão , a mesa posta, o rádio em companhia, eram os mesmos de todos os dias.
ela não. mas que palavra fora dita? insistia em lembrar enquanto entra no quarto e pega um vestido alegre. vestiu-se por baixo com o luxo do guarda-roupa enclausurado só para festas. roupa sem usar é como música não ouvida.
tomou banho, certamente o banho mais longo de sua vida. comprido, perfumado. o sabonete tocava sua pele como quem tateia no escuro, sua pele que lhe era tão estranha e há tantos anos a vestia.
não. nada sabe de si, nunca soube.
o carro na estrada deixava como rastro o perfume de seu corpo. ela seria a paisagem; mirada interior.virou o retrovisor e viu seu rosto pela metade.
a família encontrou sua cabeça na margem da estrada. um caminhão a decepara.




"há que se construir um mundo próprio, com o qual não haja comparações possíveis. para o qual não existam medidas de juízos anteriores."
pier paolo pasolini

Nenhum comentário: