sexta-feira, fevereiro 17, 2006

COPOS DE LEITE DA FAL

COPOS DE LEITE DA FAL


vejam este texto da Fal em cidades crónicas. nem sei se poderia replicar aqui. mas é tão belo! e desde que estou na marginalidade, lá vai.

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Copos de leite

Fal Vitiello Azevedo

Taxista palmeirense.
O papo do cara era qualquer nota.
O rádio numa estação evangélica.
Eu no banco de trás, sublimando.
Profundos pensamentos sobre a morte da bezerra.
Avenida enorme.
Nove e tanto da manhã, sol de rachar.
Avenida implacável.
Pasta com papéis na mão.
Chegamos.
Tchau, obrigada, bom trabalho, boa sorte, vá com Deus, fique bem, olha o troco, é seu, obrigado, Deus abençoe, tchau.
Banco fechado.
Calçada irregular.
Mas muito irregular mesmo, o que será pilotar uma cadeira de rodas por aqui?
Vitrines.
Vitrines.
Vitrines.
Eu ali nas vitrines.
Pareço tão velha.
Pareço com alguém sem ilusão nenhuma nesta vida.
Mas eu tenho.
Elas estão aqui, nalgum lugar, entre as buzinas, o asfalto que derrete e o boteco onde eu entro pra tomar café com leite e comer pão na chapa.
Elas estão aqui, as minha ilusões.
Num ataque, entro na floricultura e compro um buquê de copos de leite.
Copos de leite.
Eu me sinto tão rica e sofisticada assim que saio da floricultura.
Claro que a sofisticação só dura meio quarteirão.
E daí, começo a me perguntar que diabos eu estou fazendo com aquele trambolho no colo, esse bebê indesejado, num dia de tantas coisas pra resolver na rua.
Banco aberto.
Chá de cadeira.
Café de máquina.
Bato o recorde mundial, ninguém ouviu tantos ‘um minutinho, o gerente já vem falar com você’ quanto eu.
Alvará.
Preciso fechar essa conta, Senhor Gerente.
Não, não pode.
O dono da conta morreu há quatro anos, Senhor Gerente, olha, eu tenho um alvará, eu tenho a certidão de inventariante do espólio, eu tenho o atestado de óbito.
Ele morreu, eu juro, eu juro, Senhor Gerente.
O Senhor Gerente até que acredita em mim, entende?
Mas ele não pode fazer nada e suspira ‘ah, a burocracia’.
O Senhor Gerente sacode a cabeça, enxuga o suor num lenço.
Ele vai avaliar meu caso com carinho e entra em contato comigo em dez dias.
Talvez quinze.
Mas você esperou quatro anos, não é, minha filha, você não está mais com pressa.
Não, Senhor Gerente, eu não tenho pressa nenhuma.
Bato o recorde mundial, ninguém teve tantos ‘casos estudados com carinho’ quanto eu.
Saio do banco, as flores no colo.
O calor é um soco na cara.
Novos bancos, novos alvarás, escritórios de advogados, muitos, muitos.
Trânsito.
Todas as avenidas são implacáveis.
Todas as buzinas me assustam.
Eu mal ouço meus pensamentos.
A cidade também não.
Ela não me escuta.
Ela não me dá colo.
Ela não me ampara.
Ela me pune com o calor, com motoristas de táxi irritadiços.
E com um pouco de dor.
Lá pelo quarto ou quinto táxi, esqueço minhas flores.
Meus copos de leite.
E me arrasto sem sofisticação nenhuma para o próximo compromisso.
E sem nenhuma ilusão.

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