quinta-feira, fevereiro 22, 2007

coisas do brasil

Quando a impunidade faz esquina com a ignorância

por ana laura diniz

em: cronópios

e

mão na kumbuka




No meio do caminho tinha um caminhão.
Tinha um caminhão no meio do caminho.

Quem dera esses versos fossem uma simples alusão à Carlos Drummond de Andrade em seu poema "No meio do caminho". Mas não. Esse é o triste retrato do descaso total e absoluto em que vivemos no Brasil.

Explico melhor. Há cerca de oito meses saí de São Paulo e vim morar no agradável município de Caxambu, no Sul de Minas Gerais. Para quem não conhece, uma região de muita água e beleza natural - apesar da cidade estar um caos. Quem reclamava, até o ano passado, dos buracos da Marginal Pinheiros e da Marginal Tietê na capital paulista, não teria o que comentar sobre as crateras em que se tornaram as ruas de Caxambu. Aqui, sem qualquer exagero, há meses se escolhe o menor buraco ou desnível para passar sem ter um prejuízo grande com o carro. E claro: adeus escapamentos, balanceamentos, pneus etc etc etc.

Você, caro leitor, deve pensar: "Ah, mas a Prefeitura ou algum órgão governamental se responsabiliza pelo devido ressarcimento dos danos aos cidadãos..." É assustador se disser que "não"? É assustador se disser que mesmo a Prefeitura tendo recebido verba há muito tempo para o asfaltamento das ruas nada se faz? Uma cidade do tamanho de certos bairros paulistanos onde, numa madrugada, seria feito todo o recapeamento, aqui correm meses, meses... e com as chuvas... "ah, as chuvas"... pioram muito mais o caos estabelecido antes de qualquer água. Se há culpa, por certo não cabe à São Pedro. Mas as desculpas se prorrogam por dias, meses e anos... e horas. Muitas horas. Como um caminhão atravessado numa rua, onde ninguém sai ou entra.

Ah, sim, o caminhão no meio do caminho. É tanta coisa que a gente vai, volta, porque no fundo, no fundo, os fatos são dois: incompetência generalizada e descaso com o indivíduo.

Vamos lá, caro leitor. Pense comigo. Por que geralmente as pessoas escolhem viver num condomínio?

Respostas mais freqüentes: desejam paz e tranqüilidade; querem ter e oferecer segurança para viver; querem ter e oferecer segurança aos filhos, aos amigos e aos parentes que os irão visitar; desejam usufruir de mais liberdade; desejam criar animais sem quaisquer problemas e/ou interferências; em suma, querem usufruir do que seria normal em qualquer lugar.

Pois bem. Mas há um lugar nessa mesma Caxambu chamado "Condomínio Rural Vale das Colinas". Tirando o fato de que nada, absolutamente nada aqui funciona dentro da lógica, do bom senso e da coerência, é um espaço muito bonito de se viver. Bonito, mas vazio, sabe como? Feito àqueles rapazes e moças bonitos toda a vida, mas que na hora que abrem a boca... hum, que tristeza que dá! A beleza acaba tamanho o vazio intelectual. Aqui, além desse vazio, há um outro problema muito pior, em se tratando de um condomínio. Quase tudo é proibido. "É proibido proibir", diria Caetano Veloso. Mas aqui, pela arrogância de uns e inaptidão de outros, há-ha, existe multa para tudo. Para cachorros que fogem quando se abre o portão da chácara, para cachorro que anda sem coleira. Para condôminos que transitam a uma velocidade superior a 30Km/h nessas ruas recheadas de "tartarugas" de poucos em poucos metros (nem na cidade se vê tantos quebra-molas). Para condôminos que desejam aproveitar o domingo, muitas vezes, seu único dia de folga, para dar aquela aparadinha na grama de seu jardim e usam a máquina de cortar grama. Há multa para quem quebra o silêncio. E multas vultuosas! Para isso e para aquilo as multas existem. Porque até as crianças são proibidas de brincar fora de seus cercados... Um verdadeiro rol de leis forjadas e criadas à bel prazer, já que muitas infringem a própria Constituição do País... um lugar surreal. Absurdamente surreal. Não acredita?

Domingo, 11 de fevereiro de 2007, antes das 8h da manhã - O condômino não pode ligar o seu cortador de grama, norma da "Convenção", mas um trator (sim, um trator!) corta o capim do condomínio. A cena já havia ocorrido no dia anterior, em pleno sábado, e se repetira no dia seguinte, acordando impunemente os moradores.

Mais?

Quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007, 7h30 da manhã - Aquilo que deveria ser mais um dia útil como outro qualquer começou truncado. Com um caminhão, claro, no meio do caminho. Nenhum carro entrava, nenhum carro saía. Nem pela rua, nem pelo mato, nem pelo pasto. Aliás, nem moto passava. O que um síndico, uma pessoa normal à frente da administração de qualquer coisa faria? Em qualquer lugar do mundo, resolveria. Em uma, duas, três horas? Não, em minutos. Como? Se você é responsável pela administração de algo e não sabe, por favor, destitua-se do cargo que será menos feio para a sua reputação. Mas se você é daqueles que não dá o braço a torcer, aqui segue um rápido manual básico de sobrevivência para síndicos, condôminos e condomínios:

- Há um caminhão no meio do caminho? Não tem como tirá-lo sem guincho? Pois bem, providencie um transporte qualquer, mas digno, para que as pessoas do condomínio consigam chegar aos seus compromissos.

Afinal, para que servem tantos regimentos teóricos e lunáticos se a realidade é tão simples e exige apenas bom senso e competência? Para que serve tanta paisagem bonita, se até o sol está propenso a multas se decidir ficar por um minuto a mais na encosta da montanha antes de se por no Brasil e surgir no Japão? Por falta de habilidade de uns, outros perdem a paz e os seus compromissos. No meu caso, profissionais. Alunos e mais alunos dentro de salas de aula para a professora que não vem, não virá e não foi. E por quê? Por causa de um simples caminhão atravessado desde às 7h30 da manhã, e que assim permaneceu quando o visor do relógio já mostrava 10h55.

Então vêm as pessoas e dizem que o País não vai pra frente por causa dos Governantes, aqueles tantos amontoados de gravatas em Brasília. Alguns à espera do mensalão, outros não. A dignidade e a honestidade, graças a sabe-se quem, ainda existe. Mas e a responsabilidade do restante? Até quando as pessoas acham que poderão se esconder no outro? E pior, na incompetência dos outros? E a parcela que cabe a cada um? "Ah, mas acidentes acontecem, agora é ter paciência", afirmou um condômino metido a síndico - aliás, uma figura amplamente conhecida nessas redondezas por sua arrogância, prepotência e ignorância - no meio desse formoso-caos chamado Vale das Colinas.

Sim, Brasil. Tenhamos paciência.

Enquanto a administradora do condomínio retorna meu pedido de “atestado”, uma declaração formal do “acidente” para apresentar no colégio onde leciono, tenhamos paciência. Enquanto o porteiro-reserva (sim, o oficial está de férias) acha que tenho algum grau de parentesco com o Super-Homem ou com o Lion, personagem do Thundercats (“espada justiceira, dei-me a visão além do alcance”), tenhamos paciência. Não entendeu essa última? Explico também, caro leitor.

Há-ha. A desculpa do porteiro, depois das 11h30 da manhã: “não avisei que o caminhão saiu há meia-hora porque achei que você fosse ver daí”. Leia-se “daí”, caro leitor: uma casa que não fica na parte alta de um terreno de quase 3 mil metros quadrados, há cerca de 500 metros do portão, com duas curvas e tantos muros de terrenos... sabe onde? Drummond responderia: “No meio do caminho”.

Sim, Brasil. Tenhamos mais que paciência. Porque enquanto alguns querem apenas trabalhar para sobreviver, ir à luta, outros simplesmente acostumaram a exibir um poder que não têm. Outros, além disso, acostumaram tanto a mamar nas tetas governamentais e do próprio povo, porque somos nós quem pagamos milhões de taxas e impostos que, tanto faz um episódio como esse, que se ninguém fala e faz nada, passa como sendo normal ou realmente "acidental".

“Arruaceiros”, clamam os incompetentes dos que reclamam. “Anarquistas”, muito obrigada. Isso para mim é um elogio.

Acidentes acontecem, é um fato. Mas e aí? Cruza-se o braço à espera do guincho que "está vindo" e nunca vem? À espera de Chico Buarque, talvez?

Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém

Pedro pedreiro fica assim pensando
Assim pensando o tempo passa
E a gente vai ficando pra trás
Esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento
Desde o ano passado
Para o mês que vem

Realmente. Façamos feito o porteiro-reserva desse nobre condomínio: estendamos uma cadeira no asfalto e apreciemos o sol na face que inteira sorri. Que os outros percam os seus compromissos "que tudo bem". Que um senhor, por ironia do destino, ou uma senhora, pudesse estar dentro de um carro numa emergência indo a um hospital morra, tudo bem. Afinal, tem um caminhão no meio do caminho e ninguém faz nada! Aliás, que o mundo se acabe. "Eu quero mesmo é morrer encostado num barranco". É o que todos parecem destilar em seus sorrisos vãos.

Que mundo irresponsável é esse que nos pintam? Que pessoas são essas que cometem danos após danos e depois ainda querem leis, infantarias, exércitos e canhões ao seu favor?

É. Hoje, além de jornalista premiada, escritora premiada e produtora cultural, em São Paulo, sou uma simples professora no Sul de Minas. E anônima. Mas acima de tudo, uma cidadã. E uma coisa é certa. Da mesma forma que nunca desvirtuei uma só matéria, nunca tive a desonra de desviar um único giz que fosse. De sala de aula alguma. Nem a garantia de ir e vir dos cidadãos, garantida na Constituição.

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Que valha a ironia de uma das fotos que tirei do caminhão. Impresso na traseira: "Por tudo isso. Obrigado Senhor".



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