sexta-feira, janeiro 23, 2009

a galinha




a galinha


No final da tarde o cachorro se coçou no pau do andaime. Naco estava em cima dele terminando de embossar o beiral da casa.
Naco tentou se agarrar em alguma coisa antes de cair. E antes de cair pensou que fizera muito mal em não ter armado melhor o andaime. A galinha que estava ciscando embaixo dele conseguiu escapar com um vôo rasante. Quase ficou esmigalhada. Mas não ficou. De onde aterrissou olhou para trás e ficou olhando. Naco tentava se levantar do chão dizendo meio mundo de reclamações. Depois que tirou do chão o próprio corpo foi juntar a colher de pedreiro, o balde de massa e colocar o cimento esparramado pelo terreiro dentro do balde. Então ela saiu andando, ciscando vez por outra, cacarejando, como se estivesse chamando sua cria.
A galinha estava sem qualquer pintinho. Todos morreram. Colocaram para que ela chocasse também ovos de pata. Mais de pata do que dela mesma. Quando os filhotes nasceram, secaram as penas, bicaram um farelo de milho que estava na vasilha, sacudiram os rabos e, sentindo-se capazes de se sustentar sobre as próprias pernas, arriscaram andar de um lado para outro no terreiro. A galinha chamava e eles corriam para debaixo de suas asas. Arriscaram ir mais longe. A galinha deixou. Depois os chamou para baixo de suas asas. E assim corria o dia. Até que os patinhos sentiram o cheiro da água. E todos eles, de asas abertas, correram para o rio. Nem bem um rio. Um valão que corria nos fundos da casa. Quando chovia ele ficava furioso. E entraram nele. Foram nadando, nadando. Dentro do valão entraram também os pintinhos e vendo que não conseguiam nadar ficaram parados na beirada de lama. A galinha desesperada corria pela margem do rio, de um lado para outro, chamando as crias, gritando para que todos voltassem. Os patos se afastaram mais ainda experimentando o nadar , deixar a correnteza levar o corpo, retornar, mergulhar o pescoço na água e beliscar alguns peixes pequenos. Os dois pintinhos, porque eram só dois, ficaram na beira do rio com as patas afundando na lama. Eles deviam ter pensado em esperar só um pouco, até que os outros voltassem. Precisavam aprender como deslizar na água.
A galinha corria atrás dos patos que se afastavam nadando. Quando não conseguia vê-los esticava o pescoço entre as moitas de mato e chamava, chamava. E corria de novo para onde estavam os pintinhos
Naqueles dias de fim de verão, todas as tardes, chovia muito e o rio ficava caudaloso e imprevisível. Um galho que era levado por ele, ninguém diria que poderia acontecer o que aconteceu, bateu contra as pernas dos pintinhos e os derrubou na beirada de lama do rio. Foi o bastante. Eles tentaram se levantar e a cada esforço afundavam mais. E sujaram irremediavelmente as penas com lama.
Se Naco aparecesse naquele momento ainda poderia salvá-los. Bem que a galinha gritava gritava desejando que isso acontecesse. Corria de um lado para o outro na margem do rio. Ia até a porta da cozinha da casa voltava correndo para perto dos pintinhos tentava tirá-los da lama com o bico. Mas era sempre pior. Às vezes sua pata pisava no corpo deles, ao mesmo tempo em que tentava tirá-los, e eles afundavam cada vez mais. A galinha, batendo as asas de desespero, cacarejando, entrava pela casa adentro e ninguém, ninguém aparecia.
Quando os patinhos saíram de dentro do rio ela voou para cima deles. Bicou-os, bicou-os por todos os lados. Principalmente na cabeça. Foi derrubando um a um. Ficaram sangrando na lama da beira do rio, os corpos espalhados com as penas coloridas de vermelho e de lama. Morreram todos.
Ninguém conseguiu a acreditar no que viu. Quando todos vieram ver o que havia acontecido. Mas todos diziam: nunca mais queriam botar essa galinha danada para chocar de novo. Naco esperaria que ela engordasse, porque o choco sempre emagrece, e faria um bom almoço de domingo com ela.
Era o destino da galinha que agora estava parada olhando Naco levantar as coisas que haviam caído com ele do andaime, gastar o cimento tapando um buraco no chão e outro na parede e sair chutando as tábuas que se despregaram definitivamente na queda.
A galinha ficou olhando a noite chegar. No poente o sol. Ela respirou no ar um cheiro de sabonete que conhecia bem e que perfumava sempre àquela hora. Esperou um pouco fingindo que ciscava na porta da cozinha e viu Naco, de terno preto, com um livro embaixo do braço, se despedir da mulher e dos filhos e sair pelo portão sem olhar para ela. Ele passou a mão na cabeça do cachorro e gritou para a mulher dar um banho nele amanhã porque estava com sarna.
Ciscou um pouco mais. Não tinha nenhuma vontade de ir para o poleiro. Mas viu que a noite ia chegar mesmo. Havia feito um ninho num canto de mato que ninguém iria descobrir para proteger as crias quando nascessem. Nem gavião ou chuva poderiam encontrá-los. E agora não sabia o que fazer. Cacarejou, chamou para ver se alguém de sua linhagem atendia. Mas nem pinto nem pato.
Quando os pingos grossos da chuva escorreram pelas telhas, nas folhas das árvores, resvalaram em suas costas ela olhou aflita para o céu e viu que estava todo escuro. Correu para a beira do rio e não viu mais nada. Um raio riscou perto e veio o estrondo. Ela apressou o passo. Correu de volta. Correu. Correu. Até o próximo galho. Onde ficou. Com a cabeça embaixo das asas.

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