domingo, novembro 23, 2003


foto de sebastião salgado


florão d'américa

a mulher embala
embala seu menino morto
seu corpo o aquece
ele até fala:
mãe, meu sangue é ralo
pouco e roto
a mãe quase grita:
cala!
sustenta o último sopro
meus braços são quentes
e embalam
embalam.


mãe, diz o menino,
me enterra, estou morto.
a mãe sufoca o grito
o rosto é magro
seco
já não há pranto
mãe, descansa, pede o menino
me tira do teu peito
segue outro destino
vai parir outro filho
que não existo mais
a mãe hesita
teimosa solene
arfante embala
embala
o filho morto
embala
e não sofre mais


e de tanto proteger
a sua cria
a mãe esquece o rosto
os braços
as pernas e vai
supondo que está vivo seu menino
aguarda dele
a promessa de um destino
que quando vivo
lhe augurou o pai

costurou-lhe dozouto roupas
cada qual mais altaneira
o quero impávido, colosso!


e o tempo foi-se a passar
minguou o corpo do menino morto
as roupas restaram inteiras
com elas, as dezouto,
costurou uma bandeira
a na cumeeira da casa
a desfraldou no ar.

trêmula à noite ela tem
as aves no telhado
com quem falar.
as aves quedam mudas.
são aves
e a seu modo
cada uma resume o seu cismar


um sapo ri no brejo
não acredita que aves sóbrias
conversem com um pano
sujo roto desbotado
do telhado

a coruja solene
no oco do caminho
repete
eu falei
eu falei
que o menino
não iria vingar

o bacurau
transido de frio
avisa
e os olhos arregala
tem morto na sala

mãe, perguntou com voz fraca
o menino morto.
sou um travesti da lapa?
criança você será de tudo um pouco
ninguém verá menino como esse
porque você tem fé e orgulho
do ventre onde nasceu

o menino morto pensa
medita
pasmado com seu destino
mesmo morto terá de axistir ainda?

mãe, tenho por acaso algum destino?
- porque você nasceu em berço explêndido,
apesar de não o poder perceber
aqui, neste lugar humilde,
antes de existir já lhe traçaram a vida
não fui eu
gostaria que você fosse
o meu menino para vigiar sempre
e cobrí-lo em seu sono
mas cedo ainda o arrancaram de meu ventre
afirmaram:
pasmem! não é ilha, é continente,
tão rico, tão fértil, tão promisso
tragam venham surjam de portugal
as suas gentes
de outras terras mais e mais
acaba de ser descoberto o promissor


e eu o perdi filho, que um dia gerei
e eu o perdi filho, que um dia chorei
e meu panto foi tão forte
tão fecundo
que criou os rios que há no mundo
os mares que por aí se vão.

hoje não choro mais
sequei
mas filho cumpre sua missão!

o filho morto os olhos de susto arregala
como morto posso cumprir sinas?
e engatinha se arrastando
inventa seu caminho
pensando que direciona seu destino
caminha em círculos
girando o próprio corpo
aflito ao tropeçar no seu sentido
atento à comandos vãos.

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