sexta-feira, dezembro 12, 2003

comenta lilian, minha amiga e professora que nos acompanha durante este passeio de Villas Boas Corrêa. "êle não elogia qualquer coisa".


Romance de uma cidade


"Villas Boas Corrêa
hoje no jb

Recebi, há cerca de duas semanas, convite da Editora Objetiva para um passeio singular, não apenas pela duração de 370 anos, mas pelo extenso roteiro da história da Cidade de São Paulo. A qualidade do guia espicaçou a curiosidade não apenas pelos laços de anos de amizade, mas também pela
admiração pelo escritor de texto próprio, com estilo e absoluto domínio da língua, que maneja com desembaraço e intimidade.

Assim, pelo braço de Roberto Pompeu de Toledo, comecei a andar com passo lento, parando e voltando atrás para conferir impressões, pelas 509 páginas das 558, com os anexos, de "A Capital da Solidão". E, a cada linha, a sedução da descoberta de uma obra clássica e definitiva mistura-se ao instigante
esforço para tentar desvendar os truques que aprisionam o leitor, agarrando-o à cadeira, esquecido das horas e das fisgadas do estômago vazio.

Ora, sou um veterano e incondicional freguês de tudo que o autor espalhou, com descuidada leviandade, por jornais, revistas e variadas publicações. Julgo-me capaz de identificá-lo passando os olhos por meia dúzia de parágrafos. Na última página do semanário Veja, a apresentação das crônicas
imperdíveis (especialmente, para mim, a que dedicou, num cochilo da generosidade, ao meu livro de memória jornalística), com o antetítulo permanente e incomum de ensaio, cutucou-me a atenção como alfinetada no dedo quando se remexe em baú de guardados: na moita da dissimulação, Roberto de
Toledo vem há muito afiando a faca e calibrando as armas para a caçada sonhada de contar a história da cidade de São Paulo como um romance.

Preparou-se em silêncio com meticuloso cuidado, indo aos detalhes para escrever o livro único, pelo traço original, que é o segredo do seu encanto. Claro que não é o primeiro escritor a mergulhar na fabulosa saga da maior cidade do continente e das maiores do mundo, desde a fundação, embrulhada na
controvérsia de duas datas, à chegada de Martim Afonso de Souza ao planalto escondido pelo paredão de montanhas que tapava visão da extensa faixa de rala ocupação litorânea do imenso território privativo de índios, negros, mamelucos e raros brancos, sobreviventes de naufrágios ou criminosos
desterrados pela Corte.

Entre os 118 livros consultados e que ocupam mais de seis páginas dos registros finais, estão catalogadas praticamente todas as obras fundamentais sobre o assunto. Muitas assinadas por historiadores que merecem a dupla
qualificação de escritores.

Não é bem aí que quero chegar. O achado do guia especialíssimo vai fisgar o leitor com o tratamento íntimo, de velhos conhecidos, de quem conta a história, no blandicioso coloquial, com zelo extremo que vai ao exagero na
pesquisa de nomes, datas, versões, como quem desfia o enredo de romance a que nada falta, desde a galeria de personalidades poderosas, misto de heróis e bandidos na ótica das nossas exigências, à dupla de jesuítas - o ranzinza
padre Manuel da Nóbrega e o paciente padre José de Anchieta, a escrever nas areias úmidas os versos em latim em louvor à Virgem Maria - que se destaca entre os fundadores do colégio, em 25 de janeiro de 1554, passando pela
brutalidade das bandeiras para a caça aos índios e a busca das minas de ouro e de pedras preciosas.

A tais manhas, acrescente-se a espantosa argúcia em tecer fios embaralhados para sugerir surpreendentes
encadeamentos e soluções que enriquecem ou retificam as versões consagradas.

Desconfio de que desde moço Roberto Toledo, com mapa no bolso, sapato folgado, caminha em todas as horas do dia, desde as primeiras claridades da manhã, vara madrugadas até o nascer do sol que espanta a noite, variando os
horários e seguindo itinerários traçados para cobrir não apenas a imensa área da capital, que inchou à loucura da megalópole, mas os arredores.

Nas andanças a que nos convida - pelo menos em duas de esfalfar um jumento: a primeira, que começa com lábia macia na página 219 para terminar na 236, despejando o convidado, ''ao fim do passeio a que o obrigamos, cansado e
sujo'', e a segunda, seguindo o último viajante, que começa na pág. 459, ''antes que o século termine'', e se alonga até a página 473 -, os guias imaginários são encarnações mediúnicas do autor.

Desisti de segui-lo por avenidas, ruas e bibocas, apesar das atualizações precisas dos nomes de todos os logradouros e das suas muitas transformações.
Em próxima releitura, apelarei para a ajuda do mapa da cidade.

Na derradeira e mais marota das tramóias, Roberto Pompeu de Toledo pinga o ponto final em 1900, quando a capital, estreando os bondes elétricos e já servida por trens, começa a ser invadida pelos automóveis, seus novos donos.

Com a ginga, descarta um século que não poderia ser contado como romance. Pelo menos, a segunda metade da caótica ocupação urbana pela migração rural que ocupa todos os espaços, escala os morros na favelização desenfreada,
esparrama-se pela periferia com o domínio das gangues organizadas do tráfico de droga, do crime, dos seqüestros.

São Paulo, engaiolada pelo medo, prisioneira das grades, expulsa das ruas e praças, consola-se com a degradação do Rio, vítima da praga populista. Não sobrou orgulho no fundo da vergonha provinciana para a pinimba bairrista.

Ao Rio resta o lenitivo das praias. Por pouco tempo.


villasbc@unisys.com.br

Nenhum comentário: