não sei se é conto ou o que seja. brian higgin e irene khalil de janelas para o mundo, uma experiência coletiva de ciberliteratura perguntaram se eu teria um texto de poucos minutos que seria falado pela irene com trilha sonora e edição do brian.
enxuguei um conto e ficou assim. envaidecida e honrada me atrevo a exibí-lo aqui.
ôvo contínuo
é hora. pular da cama. enterrar-me até o pescoço nas comissuras do dia. ariar os dentes,. ario tanto e tudo. nem mais escovo. santo deus! até os dentes! mas que horas ? atrasada estou. estamos. acordo o filho, troco-lhe a pele. acordo o marido. me dá um murro no estômago. pensa ser eu quem tritura seu tempo. seu dinheiro. sua gargalhada. no triturador de comida. na pia da cozinha. o filho pequeno suga a mamadeira. a empregada carrego nos braços e a deponho no fogão. são horas, mundo! estou acordada. vestindo a mágica disposição. mas que tempo? onde? ovos quentes servidos. café, agouro da manhã nas veias. o pó nos móveis imita a dança dos véus. conquistando minha mão para varrê-lo. retiro o carro da garagem. nem percebo. inicio a encontrar o compasso do passo do dia costurando a noite. as passadas prensadas do marido aprisionam os vasos na varanda. sobraçados de crianças. que, como trepadeiras, enlaçam a mãe de ferro. virada em grade nas janelas. protegendo o sono das família contra invasores. arrota o ovo no carro. . peida um pum e o sufoco. o filho faz o dever de ontem. o homem me xinga, me atropela. me culpa por desmazelos. a criança berra. recebe um tapa. a marca do pai nas nádegas são dois olhos ávidos para morder. e roem o tapa. a mão . e roem. o homem abotoa a gravata. liga o rádio. o garoto do dever reclama. o homem não está dentro do carro. o garoto cutuca ao homem que não está mais ali. e me nomeia de burra porque deixei o sinal avermelhar, sem avançar no amarelo. hesito se há tempo para me comover. arranco eficiente no verde. a empregada grita da cozinha meu dever de rua. comprar carne. comprar verdura. agrião. descarrego o primeiro filho. tropeça nos cadernos, chuta a obrigação. desembarco o homem que beija a face da família. deixo o filho no jardim de infância. que continua a chorar. esperneando o vento ameaça desmembrar-se. mas vai. separo a roupa para lavar. entrego o almoço à empregada. ensino de cada tempero o sabor do dia a se urdir. a poeira zomba de mim. a máquina ronca preguiçosa e bate na roupa, como na estaca o martelo, e a enxada. que bate e bate na terra, obstinada em cavar. contínuo reiniciar. a máquina roncando, o aspirador aspirando a cebola e o alho a frigir, o banheiro dando descarga na comida ainda a se cozinhar da dona de casa. desenovelando suas ocupações. cônscia. não dorme em serviço. não bate ponto: o patrão confere. o patrão cuida e todos os dias há ofertas: ave-marias. deus meu! quebrou a agulha da máquina de costura. enguiçou a enceradeira e explodiu a panela de pressão entre os dedos da colher. meu deus, o gás está no fim o tempo da manhã, que se esgota.. reclamo o filho no colégio; onça suja de sangue e suor. o marido no trabalho. mau humor e indiferença. lê jornal, fuma cachimbo. costuma dizer alô para a família, beijar sua face. o filho no jardim de infância. chora ainda porque levou um ponta-pé no umbigo. lavo, esfrego, perfumo os três na banheira da casa. a comida preferida dou na boca. à sobremesa toco cítara. durante o cafezinho escuto: queixas e reclamações da comida do dia. o filho vai dormir.outro desaparece. o homem anda a trabalhar e dá um beijo na face. lavo os pratos, cato os restos, dou pasto às formigas. faço mamadeira, preparo lanche, passo roupa. de novo a poeira acumulada nos móveis dormindo preguiçosa a lombeira da tarde. a televisão percorre os cômodos instalando sua voz. diminuo o som. o garoto aumenta. diminuo. é necessária a provação. estralo o pão entre os dentes, como os dedos sem cuidar. estanco o sangue na toalha.o outro acorda chorando de barriga vazia. corro e o levo ao curral. campeio a bosta em torno. lavo-me na urina do pomar. banho-me na lagoa de ontem, a da nascente sem poluição. prego botões no peito. escovo encardidos e as portas dos móveis gemem ao se abrir. brinco de trenzinho, trenó, carrinho. conto a história que ele quer sempre repetida. na vasilha refratária o leite ferve ameaçando entornar. as portas abertas batem no apartamento. escancaro as janelas. peço desculpas pela indiscrição. o menor adormeceu sobre os trilhos. outro vê televisão e ouve cds. joga nintendo enquanto faz o dever de amanhã. cansado. enojado.povoado por equações de segundo grau. jantamos nós quatro contritos. e cambaleiam os dois no sentido da cama. a empregada empluma-se no elevador de serviço. deixa um rastro que lembra os cheiros fortes dos perfumes da coty. agora é avon. avoneia-se para a passarada com quem voará. visito os retratos da família. esta avó sustentou filhos costurando para fora depois que o marido morreu na espanhola. fazia os ovos nevados que nunca mais comerei iguais. da porta de vai-e-vem da cozinha rompia apoteótica coberta pela neve dos ovos. esta outra, sem ter olhos azuis, baixa e gorda, vestia luto para receber o montepio do marido. esta tia colecionava olheiras e papos de pranto.
já disse pra mãe: eu vou. ela me confirma: você fica.
olho os retratos nas paredes. parecerei com todas. enterrarei os mortos e os desaparecidos. adotarei fibra sertaneja para sonhar com sortilégios, presságios. temerei por filhos e netos.e, quando todos se esquecerem de mim serei retirada da cadeira onde faço crochê pendurada na moldura da parede. caso a sina não mude, alguma ela visitará os retratos e, às noites, comigo dirá do que fizemos.
enquanto, visto a camisola, passo creme nas mãos e invento novelas na tv. o marido chega da conversa com os amigos. pede comida.vê televisão até que todos os canais saiam do ar. depois, deita junto a mim e me cavalga.
quando a casa dormir escutarei o silêncio da respiração. invejarei a empregada. visitante noturna das cervejas e do sexo incontido com seu homem lhe cheirando o cabelo e falando estrelas de orgasmo. os dois, espocando na noite me farão insone e desesperada. aturdida por um sexo não consumado. apenas uma soturna cavalgada ligeira. silenciosa.como o galo gala a galinha. e porei um lindo ovo pela manhã que será devorado por meus familiares em todas as refeições.
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