sexta-feira, novembro 27, 2020

 para não esquecer


foi num tempo. nem lembro data, mas os fatos. zé vicente retornava da europa onde fora aproveitar o prêmio moliere, ganho com a peça hoje é dia de rock. leila diniz, arduino colassanti estavam na fazenda do zé kleber, sempre, nas folgas da filmagem de "como era gostoso o meu francês". às noites, quandos zé kleber não abria um restaurante que possuía em parati, onde a cozinheira cantava com voz de carmem miranda, eu lia "por que lulu bergantin não atravessou o rubicão" . olhava o rio correndo em baixo da janela do hotel. era o rubicão.

uma árvore antiga caíra na fazenda do zé por sobre o rio e a gente, digo a gente, a leila, o povo todo, sentava lá em êxtase, olhando a ebulição da água, a pressa em não se repetir. minha bainha da calça descosturou, eu péssima com agulhas, tão sem importância, o zé vicente costurou. rubens rocha, a gente sentava na varanda, nos quartos, onde cabia, e depois eu retornei para os gregos, estava com hesíodo.

me cismava era que no quilombo independência um fio de arame que corria sobre o telhado de uma casa fazia o rádio ter som. sem pilhas, sem eletricidade. que eletricidade? naquela altura de espaço, num quilombo de parati. ficávamos o zé kleber e eu esperando o povo ganhar confiança. era matéria para o jb, sobre o quilombo que precisava fazer. de qualquer maneira estava um tempo por parati. quem sabe a repressão esquecia de mim?

esta a intenção. saí de casa deixando marly medalha reclamando muito. -pelo menos um carro o jornal podia mandar pra te buscar. em vez de ir de madrugada nos ônibus.
-marly, explicava , é pra ninguém saber.
combinei no fim do ponto com o motorista de parar lá em casa, menos arriscado. bem que naquele tempo risco não tinha. e ele parou, marly não deixava que eu fosse. o ônibus esperando. levei uma estrofe de bolo . pois toda a comida que ela me deixava era feita de tercetos, estrofes, quartetos, alexandrinos épicos. e eu lá no bem bom de parati visitando as 365 ilhas da baía de ilha grande de cabelo colorido de preto, calças de riscas.

foi assim que aprendi no quilombo não ser preciso lei e ordem para que uma comunidade se relacionasse. ela é intrínseca ao vivente. sem chefe, sem polícia, todos iam cedo para o trabalho e plantavam, na colheita trocavam mandioca por feijão.as festas sagradas eram misturas de latim com banto. zé kleber e eu, enquanto esperamos por caintinias. e ele veio, era o mais antigo, mais vivido, com experiências. e todos os ouviam e nós também.

só de menos evitando o contato maligno com o branco.nós ficamos exceção, ganhamos cor negra.

antes que esqueça, conto uma vivência temendo desconectar da vida. conto para eu mesma lembrar de como foi bom de como é bom viver. principalmente quando se caminha por um fio na beira do abismo. e sabe que nunca cairá por ter as medidas , talvez das mãos amigas.

pra situar, agora me situo, eu já havia sido presa em são paulo e solta, tivera meus problemas físicos e mentais, causados pelo horror e medo e já engatinhava de novo na vida. lembro, lembro, devia estar terminando a década de sessenta e iniciando a de setenta. quando os sonhos encontraram o entrechoque da realidade. foi quando o telex do jb anunciaram que eu estava morta. aí para evitar que fosse matada me esconderam na fazenda do Zé Kleber onde havia uma bela plantação de papoulas.  não morri daquela vez mas, há 5 anos, ao vender a casa do vale e precisei da certidão de divórcio foi descoberto que eu estava morta. a polícia civil do rio então me localizou entre mortos. aí fui ressuscitada. documentos refeitos. mas que agonia!

Um comentário:

Jorge Carrano disse...


De passagem por aqui deixo um beijo.

Não deixo de, vez ou outra, visitá-la virtualmente.